sexta-feira, 28 de novembro de 2008


...Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a ação, que a minha
sensibilidade repugna; ou a ação, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.
Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei de, em certa ocasião, ou sonhar
ou agir, misturo uma coisa com outra.
...Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo
mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me
interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre...
...

Mas dói-me, por exemplo, não me poder sonhar dois reis em reinos diversos, pertencentes, por exemplo, a universos com diversas espécies de espaços e de tempos. Não conseguir isso magoa-me verdadeiramente.

Fernando Pessoa in Livro do Desassossego, através de Bernardo Soares

quinta-feira, 27 de novembro de 2008


Quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante.

Paulo Leminski

quarta-feira, 26 de novembro de 2008


"Uma criança vê o que um adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que de tão visto ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher. Isso exige às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos.

É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença".

(Vista cansada)

Otto Lara Resende

domingo, 23 de novembro de 2008


"Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)

Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel

Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra."

Hilda Hilst

quarta-feira, 19 de novembro de 2008


As coisas que amamos
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável no limite
de nosso poder de respirar a eternidade
Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra maneira se tornam absoluta
numa outra (maior) realidade.
Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos,
por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária
e baixamos o amor ao estado de utilidade.
Do sonho eterno fica esse gozo acre na boca ou na mente,
sei lá, talvez no ar"

Carlos Drummond de Andrade


"Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas.
Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha,
nem desconfia que se acha conosco desde o início
das eras. Pensa que está somente afogando problemas
dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar
inquietação do mundo!"



Mario Quintana

terça-feira, 18 de novembro de 2008

A complicada arte de ver


Rubem Alves


Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões — é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão — era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso — porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver — eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...


O texto acima foi extraído do caderno "Sinapse", jornal "Folha de S.Paulo", versão on line, publicado em 26/10/2004.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Bommmmmmmmmm diaaaaaaaaaaaaa!!!!


Adoro acordar feliz sem motivo...dar bom dia com um sorriso largo e ser retribuída...amo, sou viciada, fanática por café da manhã, são coisinhas indispensáveis para que eu tenha um bommmmm diaaaaaaa!!!!

Que o seu dia hoje seja maravilhoso, caloroso, acalorado, gostoso, felizzzzzzzzzzzzzz!!!! Com momentos de amor, com gargalhadas, e ceú azulll!!!

"Põe o máximo do que és no mínimo que fazes." Fernando Pessoa

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Texto de Kátia Najara

Eu não saberia dizer quanto, mas já faz um bom tempo que não sei mais o que é manicure e pedicure, desde que decidi eu mesma fazê-lo. Acho que tudo começou com a constatação de que não gosto de salões de beleza; depois veio uma necessidade de ocupar-me comigo mesma, olhar mais para mim, cuidar de mim eu mesma, passar mais tempo comigo, e como o tempo em geral é curto, este aqui me tem sido muito precioso.

É claro que no início o resultado não era dos melhores, mas também não era dos piores... e depois, havia a compensação de estar "ensimesmada em mim mesma". Da primeira vez percebi que há muito tempo não olhava com atenção para os meus pés e mãos; descobri marcas, relembrei sinais, analisei a pele, e essa análise passou a percorrer todo o meu corpo; vi-me diante do espelho, encontrei meus olhos, aproximei-me, assustei-me um pouco, pois era como se houvesse uma outra pessoa ali, uma estranha, vejam só! tive dificuldade em fitar-me a mim mesma, que loucura! Não conseguia no início, não segurava o meu próprio olhar; estranhava-me! Fiquei algo apavorada, e não havia nada no chá. Felizmente foi rápido, coisa de segundos, eu diria; mas resisti, insisti naquele olhar: não é possível, sou eu, ora que bobagem, sou eu! E finalmente encontrei-me, comecei a me reconhecer, voltei. Mas percebi que há muito não me olhava fundo nos olhos. Não sei se a comadre já tentou fazê-lo, mas recomendo o exercício sozinha, sem que nada possa atrapalhar. Olhe fundo nos seus próprios olhos, longamente, sem pressa. Não é fácil, toda a verdade virá, mas olhe, não deixe de fazê-lo.

Bom, o fato é que me encontrei fazendo os pés, e desde então, não cedo esta oportunidade a ninguém mais. Abro as cortinas para que entre muita claridade, coloco uma música bacana, seleciono os meus apetrechos, trago o telefone sem fio e o celular para perto, geralmente aos sábados, e começo o ritual.

Primeiro a acetona para tirar esmaltes velhos ou resíduos, depois tesoura, lixa, raspagem das unhas, esfoliação, hidratação, e cutícula. A parte mais difícil é tirar cutículas: a alicate tem que ser muito boa (Tramontina ou Mundial), e deve ser usada com parcimônia; no meu caso não "descarno" violentamente como se faz nos salões (a sensação que eu tinha é que saía com vias abertas em cada dedo, tão profundas as devastações). Não! Cutícula é proteção, pára tudo! Tiro apenas o que chama atenção, o resto fica. Depois a base de proteção (fundamental para as dependentes dos vermelhos como eu), depois o esmalte (se for de excelente qualidade, a depender da cor, uma mão generosa e bem espalhada pode ser suficiente - sem falar que seca muito mais rápido) sem mais combinações e sobreposições de cores no more (se escolhi o Luxo, o Luxo somente basta - nem mesmo toques finais de brilho me são necessários). Por fim a limpeza, a parte mais melindrosa, e está pronto!

O hábito faz o monge, e tenho me tornado uma manicure cada vez melhor, aliás, as minhas unhas têm ficado cada vez melhores. E eu também.

Mas não esqueçam do exercício dos olhos!

Texto de Kátia Najara

sexta-feira, 7 de novembro de 2008


...Certa vez perguntei se naqueles furos nos pedaços de lenha empilhados no cesto podiam morar anõezinhos, como aqueles dos livros de história. Claro que podiam, foi a resposta e cravou-se como um carvão em brasa no peito de uma criança de pijama na frente da lareira aos pés de seus pais.
De repente, um chiado no meio do fogo, e do furo de um pedaço de árvore saiu uma espumarada de resina aromática - apenas natural...
Mas para mim poucas coisas eram naturais.
Não consegui nem articular palavras: esperneei, chorei, estendia a mão para o fogo e, só depois de me acalmarem com colo e braços fortes e um pouco d'água, finalmente entre soluços expliquei que ali acabavam de assar vivo um dos meus anõezinhos amigos.
Assim, às vezes, nas horas mais felizes eu me desorientava: tudo o que parecia simples podia ser também estranho, e eu não conseguia sempre explicar minha ansiedade.
Então, como aquele meu anão de fantasia, tudo o que eu amava era precário e podia terminar?
Como é que nada podia ser meu para sempre, e sempre igual?
Era possível que meu amor não o pudesse preservar e proteger?
Eu não sabia ainda o que na madureza aprenderia: que todas as coisas quando acabam são substituídas por outras; que a vida não se reduz, mas cresce, e é em tudo um milagre.

Lya Luft

Mar de dentro

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Canção das mulheres



Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.
Que o outro note quando preciso de silencio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.
Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.
Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso.
Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.
Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.
Que o outro sinta quanto me dói a idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco mais – em lugar de voltar logo à sua vida, indo porque lá está a sua verdade mas talvez seu medo ou sua culpa.
Que se começo a chorar sem motivo depois de um dia daqueles, o outro não desconfie logo que é culpa dele, ou que não o amo mais.
Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo “Olha que estou tendo muita paciência com você!”
Que se me entusiasmo por alguma coisa o outro não a diminua, nem me chame de ingênua, nem queira fechar essa porta necessária que se abre para mim, por mais tola que lhe pareça.
Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas, o outro não me exponha nem me ridicularize.
Que quando levanto de madrugada e ando pela casa, o outro não venha logo atrás de mim reclamando: “Mas que chateação essa sua mania, volta pra cama!”
Que se eu peço um segundo drinque no restaurante o outro não comente logo: “Pôxa, mais um?”

Que se eu eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire.
Que o outro – filho, amigo, amante, marido – não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.
Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa – uma mulher.


LYA LUFT