quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Fonte: Revista Época
Luis antônio Giron

“...depois, querida, ganharemos o mundo”
A profética frase de Machado de Assis faz parte de um conjunto inédito de cartas que ÉPOCA revela com exclusividade. Hoje, o maior escritor brasileiro começa a ser reconhecido em todo o mundo


Nos cem anos de sua morte, comemorados nesta segunda-feira, 29 de setembro, Machado de Assis ainda é capaz de provocar surpresas. Sua extensa obra – nove romances, 200 contos, uma dezena de peças de teatro, cinco coletâneas de poemas e milhares de crônicas – está praticamente canonizada e o torna, indiscutivelmente, o maior escritor do Brasil. Mas quem é esse gênio? É o austero fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL)? O monstro cerebral pessimista e sarcástico como o descreviam os modernistas? Ou o herói do povo, como defendiam os primeiros socialistas? Embora os estudos machadianos tenham gerado dezenas de milhares de títulos – Machado é o ramo do conhecimento literário brasileiro mais estudado –, sua vida permanece envolta em mistérios, em especial os anos de juventude. Como um sujeito pobre e mestiço, numa sociedade ainda escravagista, conseguiu se tornar o mestre da cultura brasileira? ÉPOCA teve acesso, com exclusividade, a um conjunto de cartas ainda inéditas de Machado, que ajudam a responder a essas perguntas e a desvendar o enigma machadiano. “Pela primeira vez, podemos compreender o fluxo da correspondência de Machado, suas amizades, amores, relação com a política de seu tempo e preocupações filosóficas”, diz o ensaísta e diplomata Sérgio Paulo Rouanet, da ABL. Rouanet coordena o projeto mais arrojado do centenário de Machado: organizar em ordem cronológica toda a correspondência do escritor, tanto a escrita por ele como a recebida por ele ao longo de 50 anos de vida intelectual. O primeiro volume do trabalho, Correspondência de Machado de Assis, Tomo I (1860-1869) , sairá em outubro. São 90 cartas. O segundo, previsto para 2009, contém oito centenas de cartas e cobre os 40 anos restantes.

O Machado de Assis que emerge dessas cartas é um personagem novo, distante dos estereótipos que nos habituamos a estudar na escola. Trata-se de um dândi, um jornalista e poeta empolgado com a frenética vida social e boêmia do Rio de Janeiro imperial. Ele sai com atrizes de teatro, conta suas aventuras aos amigos, divide confidências e dá conselhos. Num sinal de que estava bem à frente de seu tempo, sugere à noiva a leitura de um compêndio feminista. A um amigo distante, filosofa sobre a podridão do comportamento humano e a vida na cidade. De modo maroto, esquiva-se das ordens dos caciques políticos que chefiam o jornal em que trabalha, o Diário do Rio de Janeiro. Ele é um Machado que, mais que tudo, desce do monumento da academia e vai às ruas, rejuvenescido.

A ÍNTEGRA DAS CARTAS

As duas cartas manuscritas de Machado a Carolina que restaram da correspondência íntima do casal foram reencontradas há um mês no Museu da República, do Rio de Janeiro.

A investigação que descobriu esse novo personagem mundano começou há dois anos, sem outra intenção que ordenar um material desconhecido. Rouanet convidou as pesquisadoras Irene Moutinho e Silvia Eleuterio para sair à cata de cartas em arquivos e bibliotecas. Logo, as surpresas e os textos inéditos começaram a vir à tona – e esse novo Machado, mais jovem e impetuoso, começou a ganhar corpo.

Uma das principais descobertas feitas por Irene está no texto de uma das duas cartas íntimas que restaram de Machado a Carolina, então sua noiva. Elas foram escritas no mesmo dia, 2 de março de 1869, quando Carolina estava em Petrópolis para tomar conta do irmão, o jornalista e poeta – e amigo de Machado – Faustino Xavier de Novaes (1820-1869). Faustino sofria de distúrbios mentais e morreria em agosto. “Machadinho”, como Machado assinava sua correspondência a Carolina, estava aflito por reencontrar a amada. Derramou-se em declarações e elogios a ela, numa letra apressada e nada legível. Perto da conclusão, uma palavra soava estranha a quem se acostumara com uma versão que fora divulgada em 1939, no Catálogo da Exposição do Centenário de Machado de Assis, repetida até hoje. O trecho da carta que embatucou a pesquisadora dizia: “depois... depois, querida, queimaremos o mundo, porque só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis”.

O convite de Machadinho para a queimada planetária soava esquisito. “Havia algo de errado”, diz Irene. Acostumada com manuscritos, ela foi à caça dos originais, dados como perdidos. Encontrou o documento no Museu da República, no Rio de Janeiro. As duas cartas foram doadas à instituição pela sobrinha de Machado, Laura Braga da Costa. Irene fez a cópia das cartas e comparou-as com os textos impressos. “Notei discrepâncias e deduzi, pela análise dos garranchos, que tudo apontava para ‘ganharemos’, e não ‘queimaremos’”, afirma Irene. A carta, corrigida, ganhou um novo sentido. Machadinho declara premonitoriamente a sua “Carola”: “...depois, querida, ganharemos o mundo”. “A sensação foi de alívio”, diz Rouanet. “Nosso Machado não era incendiário aos 30 anos, nem fez um convite terrorista a Carolina!”
Acervo ABL


O desejo de Machado está se cumprindo. Hoje, ele começa a conquistar o mundo. Os simpósios internacionais sobre sua obra, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, atraem a atenção de acadêmicos respeitáveis. Críticos de alta reputação, como os americanos Harold Bloom e Susan Sontag e o inglês John Gledson, elevaram-no ao patamar dos gênios. Em seu livro Gênio, de 2003, Bloom define Machado como “um milagre”, por ter conseguido fugir de sua situação social e histórica para criar uma ficção universal. Seus livros foram traduzidos para 14 idiomas, a maior parte na década passada. Há, nos EUA, um entusiasmo por novas traduções.

A glória mundial de Machado será enriquecida pela redescoberta de suas cartas. Elas contêm mistérios que mostram a complexidade da relação amorosa entre Machado e Carolina. Uma das charadas da primeira carta está no terceiro parágrafo. Ele diz: “Sofreste tanto que até perdeste a consciência do teu império; estás pronta a obedecer; admiras-te de seres obedecida”. Soa cifrado. E as únicas explicações que poderiam elucidar o enigma estariam nas demais cartas íntimas, queimadas após a morte de Machado.
AMOR DEFINITIVO
A portuguesa Carolina (em foto de c. 1890) casou-se com Machado de Assis (acima, aos 25 anos) em 1869. Ela foi trazida do Porto depois de uma suposta desilusão amorosa. Viveram juntos por 35 anos
A Dama do Livro" e outros mistérios
Luiz Antonio Aguiar*

Conta-se que Machado, lá por 1855, contrariando seus hábitos, deixou de aparecer, nos finais de tarde, na Livraria Garnier. Seus amigos arriscaram que estaria com uma amante e foram segui-lo. De fato, havia uma senhora, A Dama do Livro, quadro do italiano Roberto Fontana, hoje na Academia Brasileira de Letras. Machado se apaixonara pela pintura e, achando o preço acima de suas possibilidades, contentava-se em visitá-la, diariamente, na vitrina. Os amigos deram a tela de presente a Machado, com um bilhete: “Não se esqueça de nós”. Machado, em agradecimento, lhes dedicou o “Soneto Circular”.

Ora, as reservas de Machado sempre estimularam fantasias. Tal como a Lenda da Madrinha, a senhora Mendonça Barrozo, que lhe teria aberto sua biblioteca e proporcionado ao afilhado pobre, que não freqüentou escola, a iniciação nos clássicos da literatura. Só que a madrinha morreu quando ele tinha 6 anos, idade em que ninguém já teria se iniciado em clássicos. Existe ainda a Lenda do Padeiro, um amigo, padeiro e francês, que, entre uma fornada e outra, haveria ensinado ao menino o idioma, algo jamais comprovado e pouco factível.

A mais peculiar é a da origem de seu apelido. Temos o poema de Drummond, intitulado “A um Bruxo com Amor”. Mas, existe A Lenda do Caldeirão. Na ABL, está o caldeirão de bronze em que Machado costumava queimar cartas e manuscritos descartados, no sobrado da Rua Cosme Velho, 18. Vendo-o assim, a vizinhança deu de gritar: Olha o Bruxo do Cosme Velho!...

Nessa biografia, não faltam controvérsias. Na certidão de óbito de Machado, além de omitida sua filiação, está que o mulato, autor de agudos textos contra a escravatura, era branco. E como profissão do presidente da ABL, nosso maior romancista, registrou-se: funcionário público.

Entretanto, nenhum mistério biográfico será tão fértil quanto suas bruxarias literárias. Esse escritor que alguns querem reduzir ao realismo e a mero retratista da História é o mesmo que deu a um canário o poder de desnortear um Darwin tropical devoto da ciência e da razão. Que transmitiu a um cronista a língua guliveriana para este participar do diálogo de dois burros sobre o progresso. Que conjurou defuntos e debateu com vermes sobre o lado patético da morte. E que, se retratou o Brasil, antes inventou uma câmera, um filme... e uma nova inteligência para decifrar os dilemas do Ser-Brasileiro.
Na ABL está o caldeirão em que Machado queimava cartas e manuscritos

Já o debate Capitu: culpada ou inocente, em cartaz há 109 anos, é a expressão corrente da impossibilidade de desvendar esse romance. Por um lado, os ardis de Bento Santiago incitam à suspeita e podemos tentar desconstruí-los, como se fossem um véu encobrindo a verdade. Por outro, levantaríamos o véu somente para constatar que não há, por baixo, face alguma. O que lemos, mesmo que para contestá-la, é a narrativa de Bentinho; não existe uma Narrativa de Capitu, nesse romance.

Ou seja, podemos denunciar a intriga que Bento Santiago fez contra Capitu para convencer o leitor... ou avalizar as confissões de um solitário Bentinho... Ou nenhuma das hipóteses? Ou ambas? Que tal alterná-las, caprichosamente? Afinal, escreveu o Bruxo: “Há neste mundo o que se possa dizer verdadeiramente verdadeiro? Tudo é conjetural.”

Algo semelhante ocorre quando nosso cronista se mete num leilão de objetos usados e lá fica a conjeturar sobre o background de uma espada. A princípio, quase nos convence de que teria sido usada na Guerra do Paraguai. Em seguida, lembra a notícia, num jornal, da chegada de imigrantes, dos quais, entre muitos de cada nacionalidade, havia um grego. Daí, quem empenhou a espada teria de ser esse grego, até porque, sendo apenas um, reclamaria menos que os demais, do cronista, caso estivesse sendo acusado injustamente. Finalmente, aventa que a espada teria sido trazida por um contra-regra, que a roubara de um cenário de teatro para conseguir uns cobres para o almoço. E encerra: “Se tal foi, façam de conta que não escrevi nada, e vão almoçar também, que é tempo”.

Foi a última crônica que Machado publicou. Haveria da parte dele despedida mais significativa e elegante?

* Escritor, autor de Almanaque Machado de Assis e organizador da coletânea de crônicas de Machado O Mínimo e o Escondido, pela Salesiana

OBSESSÃO
O óleo sobre tela A Dama do Livro (1882), de Roberto Fontana, era objeto do desejo de Machado, que não podia pagar por ele. Os amigos se cotizaram e lhe deram a obra de presente