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A traumática experiência do Holocausto foi um estímulo poderoso para as pesquisas sobre o lado destrutivo do ser humano. Terminada a guerra, muitos dos carrascos nazistas se justificaram dizendo que estavam cumprindo ordens, e que se desobedecessem teriam sido mortos.
Nos anos 1960 o psicólogo americano Stanley Milgram se perguntou se cidadãos comuns, instigados por alguma forma de autoridade, também teriam a capacidade de infligir dor e sofrimento a pessoas que nunca lhes fizeram mal. Para avaliar a possibilidade, criou em 1961 um experimento onde uma cobaia recebia ordens para dar choques elétricos cada vez maiores numa falsa vítima, sendo que a intensidade do choque mais forte seria teoricamente capaz de matar (veja descrição na página anterior). Milgram pediu a 40 colegas psiquiatras que estimassem o porcentual de indivíduos que chegaria a aplicar choques potencialmente fatais. Os psiquiatras apostaram que menos de 1% seria capaz de agir de forma tão sádica. Mas os resultados iniciais mostraram que 65% das cobaias obedeciam até o fim.
Outro experimento famoso foi feito também nos Estados Unidos em 1971. O psicólogo Philip Zimbardo recriou o ambiente de uma prisão no seu laboratório de psicologia, e designou 24 jovens escolhidos aleatoriamente para conviverem lá por duas semanas como guardas e prisioneiros. O resultado foi uma explosão de opressão que levou o experimento, previsto para durar 15 dias, a ser interrompido no sexto.
O mal e Abu Graib
O que experimentos como esses nos ensinaram? Arthur Miller, psicólogo da Universidade Miami e organizador do livro "The Social Psychology of Good and Evil" (A Psicologia Social do Bem e do Mal) explica que a visão dominante na psicologia social leva em conta os contextos sociais. Existe uma minoria de indivíduos psicopatas, destrutivos no mais alto grau e cujo comportamento não revela empatia ou compaixão. Mas as pessoas chamadas normais podem causar (e causam) grandes danos, influenciadas por outras pessoas e por certas circunstâncias. "Um exemplo clássico é o da Alemanha antes do nazismo, que convivia com desemprego, pobreza e devastação. Mas há vários casos onde pessoas procuram sair de situações difíceis em suas vidas retaliando, mentindo, arranjando bodes expiatórios", compara.
Dois fatores reforçam a força das circunstâncias. O primeiro é a visão de que a vítima pertence a um grupo diferente. "Quase todas as formas de preconceito e hostilidade vêm daí", diz Miller. O segundo é a hierarquia. "As pessoas na posição mais baixa percebem violações éticas no seu ambiente de trabalho, mas temem ser punidas se denunciarem o que vêem. A tendência é imitar seus pares e obedecer às autoridades, e com o tempo seu comportamento pode se tornar danoso ou corrupto."
Ele ressalta que essa visão é importante porque muitas vezes as autoridades preferem apontar culpados a realizar mudanças estruturais. "Quando se denunciou a tortura na prisão de Abu Graib, no Iraque, os políticos disseram que o problema se limitava a alguns guardas. Mas Zimbardo veio a público lembrar que algo sistêmico nas prisões faz com que até os bons guardas ajam como sádicos", analisaPara o psicólogo David Buss, a chave está na teoria da evolução. A fim de sobreviver e se reproduzir, o Homo sapiens criou duas estratégias. Uma é aperfeiçoar as habilidades que garantem mais acesso a recursos (tornar-se mais forte, mais atraente etc.). A outra é diminuir as chances de sobrevivência e reprodução dos seus rivais, o que Buss chama de "impor custos adaptativos". Essa segunda estratégia explicaria os comportamentos de maus. Por exemplo, denegrir a reputação de alguém teria o efeito de reduzir o acesso da vítima às benesses de um status social alto.
Dentre os atos que impõem custos adaptativos elevados, o assassinato seria o mais custoso de todos. Este aliás é o tema do novo livro de Buss, intitulado "Por que a Mente É Projetada para Matar". "A capacidade de matar é parte da natureza humana, e todos têm o potencial para agir assim em certas circunstâncias", disse Buss a Galileu. "Mas enquanto algumas pessoas a consideram uma medida extrema, outras a usam para subir na hierarquia, adquirir recursos e acesso a mulheres de alto valor reprodutivo", diz. "É abominável, mas funciona".
Gente diferente
Já o psiquiatra americano Michael Stone se tornou reconhecido por estudar as biografias de 498 pessoas realmente más, de Hitler, Pol Pot e Stalin a Charles Manson e Andrei Chikatilo, famoso serial killer canibal. Stone criou uma pioneira escala de maldade, com 22 itens onde agrupava alguns dos malfeitores. "No caso dos tiranos, a maior parte foi espancada e negligenciada em casa. O mal que fizeram foi uma vingança à crueldade a que foram expostos."
Mas há outras causas. "O ambiente não explica tudo. O irmão de Hitler também era espancado, mas nunca cometeu um crime", conta Stone. "Muitos serial killers vêm de famílias normais. São raros, mas existem", diz. O médico Renato Zamora, do Laboratório de Genética do Comportamento da UFRGS, estuda a biologia de pessoas muito violentas. "O cérebro delas funciona de forma diferente", diz. Zamora cita como evidência um estudo que fez com dez psicopatas, a quem submeteu a testes de teoria da mente para avaliar o funcionamento do lóbulo frontal. A pontuação dos psicopatas se revelou tão baixa quanto a das pessoas com lesão cerebral na área. "O psicopata é um caso de lesão cerebral sem dano orgânico. Algo semelhante acontece nos casos de depressão ou esquizofrenia. Essa transformação 'desligou' neles a capacidade de sentir compaixão."
A maldade e a arte | |
Como entender o fascínio da história de Anakyn/Darth Vader? Para o diretor teatral e psicólogo social carioca Bernardo Jablonski, a chave está em nossos conflitos pessoais. "A arte é um espelho mágico que reflete o mundo e propõe soluções", explica. No caso da série "Guerra nas Estrelas", é possível encontrar elementos muito fortes na psique humana, como as relações de poder, o relacionamento entre pai e filho e a luta entre o bem e o mal. "Histórias assim são projeções de desejos muito profundos. Na visão contemporânea da psicologia social, somos tanto bons como maus. Sou capaz de ajudar uma velhinha a atravessar a rua, mas se alguém molestar meu filho, eu mato. Sem querer diminuir as religiões, Deus e o diabo somos nós." A dualidade dos jedis é também a nossa. |
Ser ou não ser
A falta de compaixão pode ser encontrada em outros lugares. "Há 20 traços característicos de psicopatas", explica o psiquiatra forense americano Michael Welner. "Muitos, como narcisismo forte e pouca compaixão, estão presentes em altos executivos e pessoas bem-sucedidas." Ele acrescenta que os bons executivos também possuem qualidades criativas e inspiradoras, ou não teriam sucesso. "Mas é preocupante ver que quando uma pessoa bem-sucedida assume que pratica atos maus, o público parece relevar." Calejado pelos anos vendo casos horrorosos em tribunais, Welner crê que "qualquer um é capaz de fazer coisas más", e atualmente coordena uma pesquisa online para criar uma escala de maldade que sirva como parâmetro em julgamentos. "Isso pode ajudar a sociedade a ser menos condescendente, e parar de enxergar criminosos como popstars."
Para o filósofo Denis Rosenfield, autor de "Retratos do Mal", a origem dos atos destrutivos não seria o ambiente, a história de vida ou a biologia, mas a consciência. "Dizer que o mal é uma doença é uma recusa a pensar", diz. "O ser humano sempre pode dizer não a certas ações e sim a outras, mesmo que tenha um lado corrupto dentro dele. O mal é uma questão de escolha."É possível que seja. Afinal, até Darth Vader deixou de ser mau um dia.
Para ler• "The Psychology of Good and Evil", Arthur G. Miller (org.). Guilford Press. 2004
• "The Murderer Next Door: Why the mind is designed to kill", David Buss. Penguin. 2005