quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Um conto de Machado de Assis:

O DIPLOMÁTICO


A PRETA entrou na sala de jantar, chegou-se à mesa rodeada de gente,
e falou baixinho à senhora. Parece que lhe pedia alguma cousa urgente, porque
a senhora levantou-se logo.
— Ficamos esperando, D. Adelaide?
— Não espere, não, Sr. Rangel; vá continuando, eu entro depois.
Rangel era o leitor do livro de sortes. Voltou a página, e recitou um
título: "Se alguém lhe ama em segredo." Movimento geral; moças e rapazes
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sorriram uns para os outros. Estamos na noite de São João de 1854, e a casa é
na rua das Mangueiras. Chama-se João o dono da casa, João Viegas, e tem uma
filha, Joaninha. Usa-se todos os anos a mesma reunião de parentes e amigos,
arde uma fogueira no quintal, assam-se as batatas do costume, e tiram-se
sortes. Também há ceia, às vezes dança, e algum jogo de prendas, tudo
familiar. João Viegas é escrivão de uma vara cível da Corte.
— Vamos. Quem começa agora? disse ele. Há de ser D. Felismina.
Vamos ver se alguém lhe ama em segredo.
D. Felismina sorriu amarelo. Era uma boa quarentona, sem prendas
nem rendas, que vivia espiando um marido por baixo das pálpebras devotas.
Em verdade, o gracejo era duro, mas natural. D. Felismina era o modelo
acabado daquelas criaturas indulgentes e mansas, que parecem ter nascido para
divertir os outros. Pegou e lançou os dados com um ar de complacência
incrédula. Número dez, bradaram duas vozes. Rangel desceu os olhos ao baixo
da página, viu a quadra correspondente ao número, e leu-a: dizia que sim, que
havia uma pessoa, que ela devia procurar domingo, na igreja, quando fosse à
missa. Toda a mesa deu parabéns a D. Felismina, que sorriu com desdém, mas
interiormente esperançada.
Outros pegaram nos dados, e Rangel continuou a ler a sorte de cada
um. Lia espevitadamente. De quando em quando, tirava os óculos e limpava-os
com muito vagar na ponta do lenço de cambraia, — ou por ser cambraia, — ou
por exalar um fino cheiro de bogari. Presumia de grande maneira, e ali
chamavam-lhe "o diplomático".
— Ande, seu diplomático, continue.
Rangel estremeceu; esquecera-se de ler uma sorte, embebido em
percorrer a fila de moças que ficava do outro lado da mesa. Namorava alguma?
Vamos por partes.
Era solteiro, por obra das circunstâncias, não de vocação. Em rapaz
teve alguns namoricos de esquina, mas com o tempo apareceu-he a comichão
das grandezas, e foi isto que lhe prolongou o celibato até os quarenta e um
anos, em que o vemos. Cobiçava alguma noiva superior a ele e à roda em que
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vivia, e gastou o tempo em esperá-la. Chegou a freqüentar os bailes de um
advogado célebre e rico, para quem copiava papéis, e que o protegia muito.
Tinha nos bailes a mesma posição subalterna do escritório; passava a noite
vagando pelos corredores, espiando o salão, vendo passar as senhoras,
devorando com os olhos uma multidão de espáduas magníficas e talhes
graciosos. Invejava os homens, e copiava-os. Saía dali excitado e resoluto. Em
falta de bailes, ia às festas de igreja, onde poderia ver algumas das primeiras
moças da cidade. Também era certo no saguão do paço imperial, em dia de
cortejo, para ver entrar as grandes damas e as pessoas da corte, ministros,
generais, diplomatas, desembargadores, e conhecia tudo e todos, pessoas e
carruagens. Voltava da festa e do cortejo, como voltava do baile, impetuoso,
ardente, capaz de arrebatar de um lance a palma da fortuna.
O pior é que entre a espiga e a mão há o tal muro do poeta, e o Rangel
não era homem de saltar muros. De imaginação fazia tudo, raptava mulheres e
destruía cidades. Mais de uma vez foi, consigo mesmo, ministro de Estado, e
fartou-se de cortesias e decretos. Chegou ao extremo de aclamar-se imperador,
um dia, 2 de dezembro, ao voltar da parada no largo do Paço; imaginou para
isso uma revolução, em que derramou algum sangue, pouco, e uma ditadura
benéfica, em que apenas vingou alguns pequenos desgostos de escrevente. Cá
fora, porém, todas as suas proezas eram fábulas. Na realidade, era pacato e
discreto.
Aos quarenta anos desenganou-se das ambições; mas a índole ficou a
mesma, e, não obstante a vocação conjugal, não achou noiva. Mais de uma o
aceitaria com muito prazer; ele perdia-as todas, à força de circunspecção. Um
dia, reparou em Joaninha, que chegava aos dezenove anos e possuía um par de
olhos lindos e sossegados, — virgens de toda a conversação masculina. Rangel
conhecia-a desde criança, andara com ela ao colo, no Passeio Público, ou nas
noites de fogo da Lapa; como falar-lhe de amor? Mas, por outro lado, as
relações dele na casa eram tais, que podiam facilitar-lhe o casamento; e, ou
este ou nenhum outro.
Desta vez, o muro não era alto, e a espiga era baixinha; bastava esticar
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o braço com algum esforço, para arrancá-la do pé. Rangel andava neste
trabalho desde alguns meses. Não esticava o braço, sem espiar primeiro para
todos os lados, a ver se vinha alguém, e, se vinha alguém, disfarçava e ia-se
embora. Quando chegava a esticá-lo, acontecia que uma lufada de vento
meneava a espiga ou algum passarinho andava ali nas folhas secas, e não era
preciso mais para que ele recolhesse a mão. Ia-se assim o tempo, e a paixão
entranhava-se-lhe, causa de muitas horas de angústia, a que seguiam sempre
melhores esperanças. Agora mesmo traz ele a primeira carta de amor, disposto
a entregá-la. Já teve duas ou três ocasiões boas, mas vai sempre espaçando; a
noite é tão comprida! Entretanto, continua a ler as sortes, com a solenidade de
um áugur.
Tudo, em volta, é alegre. Cochicham ou riem, ou falam ao mesmo
tempo. O tio Rufino, que é o gaiato da família, anda à roda da mesa com uma
pena, fazendo cócegas nas orelhas das moças. João Viegas está ansioso por um
amigo, que se demora, o Calisto. Onde se meteria o Calisto?
— Rua, rua, preciso da mesa; vamos para a sala de visitas.
Era D. Adelaide que tornava; ia pôr-se a mesa para a ceia. Toda a
gente emigrou, e andando é que se podia ver bem como era graciosa a filha do
escrivão. Rangel acompanhou-a com grandes olhos namorados. Ela foi à
janela, por alguns instantes, enquanto se preparava um jogo de prendas, e ele
foi também; era a ocasião de entregar-lhe a carta.
Defronte, numa casa grande, havia um baile, e dançava-se. Ela olhava,
ele olhou também. Pelas janelas viam passar os pares, cadenciados, as senhoras
com as suas sedas e rendas, os cavalheiros finos e elegantes, alguns
condecorados. De quando em quando, uma faísca de diamantes, rápida,
fugitiva, no giro da dança. Pares que conversavam, dragonas que reluziam,
bustos de homem inclinados, gestos de leques, tudo isso em pedaços, através
das janelas, que não podiam mostrar todo o salão, mas adivinhava-se o resto.
Ele ao menos conhecia tudo, e dizia tudo à filha do escrivão. O demônio das
grandezas, que parecia dormir, entrou a fazer as suas arlequinadas no coração
do nosso homem, e ei-lo que tenta seduzir também o coração da outra.
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— Conheço uma pessoa que estaria ali muito bem, murmurou Rangel.
E Joaninha, com ingenuidade:
— Era o senhor.
Rangei sorriu lisonjeado, e não achou que dizer. Olhou para os lacaios
e cocheiros, de libré, na rua conversando em grupos ou reclinados no tejadilho
dos carros. Começou a designar carros: este é do Olinda, aquele é do
Maranguape; mas aí vem outro, rodando, do lado da rua da Lapa, e entra na rua
das Mangueiras. Parou defronte: salta o lacaio, abre a portinhola, tira o chapéu
e perfila-se. Sai de dentro uma calva, uma cabeça, um homem, duas comendas,
depois uma senhora ricamente vestida; entram no saguão, e sobem a escadaria,
forrada de tapete e ornada embaixo com dois grandes vasos.
— Joaninha, Sr. Rangel...
Maldito jogo de prendas! Justamente quando ele formulava, na cabeça,
uma insinuação a propósito do casal que subia, e ia assim passar naturalmente
à entrega da carta... Rangel obedeceu, e sentou-se defronte da moça. D.
Adelaide, que dirigia o jogo de prendas, recolhia os nomes; cada pessoa devia
ser uma flor. Está claro que o tio Rufino, sempre gaiato, escolheu para si a flor
da abóbora. Quanto ao Rangel, querendo fugir ao trivial, comparou
mentalmente as flores, e quando a dona da casa lhe perguntou pela dele,
respondeu com doçura e pausa:
— Maravilha, minha senhora.
— O pior é não estar cá o Calisto! suspirou o escrivão.
— Ele disse mesmo que vinha?
— Disse; ainda ontem foi ao cartório, de propósito, avisar-me de que
viria tarde, mas que contasse com ele: tinha de ir a uma brincadeira na rua da
Carioca...
— Licença para dous! bradou uma voz no corredor.
— Ora graças! está aí o homem!
João Viegas foi abrir a porta; era o Calisto, acompanhado de um rapaz
estranho, que ele apresentou a todos em geral: — "Queirós, empregado na
Santa Casa; não é meu parente, apesar de se parecer muito comigo; quem vê
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um, vê outro..." Toda a gente riu; era uma pilhéria do Calisto, feio como o
diabo, — ao passo que o Queirós era um bonito rapaz de vinte e seis a vinte e
sete anos, cabelo negro, olhos negros e singularmente esbelto. As moças
retraíram-se um pouco; D. Felismina abriu todas as velas.
— Estávamos jogando prendas, os senhores podem entrar também,
disse a dona da casa. Joga, Sr. Queirós?
Queirós respondeu afirmativamente e passou a examinar as outras
pessoas. Conhecia algumas, e trocou duas ou três palavras com elas. Ao João
Viegas disse que desde muito tempo desejava conhecê-lo, por causa de um
favor que o pai lhe deveu outrora, negócio de foro. João Viegas não se
lembrava de nada, nem ainda depois que ele lhe disse o que era; mas gostou de
ouvir a notícia, em público, olhou para todos, e durante alguns minutos
regalou-se calado.
Queirós entrou em cheio no jogo. No fim de meia hora, estava familiar
da casa. Todo ele era ação, falava com desembaraço, tinha os gestos naturais e
espontâneos. Possuía um vasto repertório de castigos para jogo de prendas,
coisa que encantou a toda a sociedade, e ninguém os dirigia melhor, com tanto
movimento e animação, indo de um lado para outro, concertando os grupos,
puxando cadeiras, falando às moças, como se houvesse brincado com elas em
criança.
— D. Joaninha aqui, nesta cadeira; D. Cesária, deste lado, em pé, e o
Sr. Camilo entra por aquela porta... Assim, não: olhe, assim de maneira que...
Teso na cadeira, o Rangel estava atônito. Donde vinha esse furacão? E
o furacão ia soprando, levando os chapéus dos homens, e despenteando as
moças, que riam de contentes: Queirós daqui, Queirós dali, Queirós de todos os
lados. Rangel passou da estupefação à mortificação. Era o cetro que lhe caía
das mãos. Não olhava para o outro, não se ria do que ele dizia, e respondia-lhe
seco. Interiormente, mordia-se e mandava-o ao diabo, chamava-o bobo alegre,
que fazia rir e agradava, porque nas noites de festa tudo é festa. Mas, repetindo
essas e piores coisas, não chegava a reaver a liberdade de espírito. Padecia
deveras, no mais íntimo do amor-próprio; e o pior é que o outro percebeu toda
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essa agitação, e o péssimo é que ele percebeu que era percebido.
Rangel, assim como sonhava os bens, assim também as vinganças. De
cabeça, espatifou o Queirós; depois cogitou a possibilidade de um desastre
qualquer, uma dor bastava, mas cousa forte, que levasse dali aquele intruso.
Nenhuma dor, nada; o diabo parecia cada vez mais lépido, e toda a sala
fascinada por ele. A própria Joaninha, tão acanhada, vibrava nas mãos de
Queirós, como as outras moças; e todos, homens e mulheres, pareciam
empenhados em servi-lo. Tendo ele falado em dançar, as moças foram ter com
o tio Rufino, e pediram que tocasse uma quadrilha na flauta, uma só, não se lhe
pedia mais.
— Não posso, dói-me um calo.
— Flauta? bradou o Calisto. Peçam ao Queirós que nos toque alguma
coisa, e verão o que é flauta... Vai buscar a flauta, Rufino. Ouçam o Queirós.
Não imaginam como ele é saudoso na flauta!
Queirós tocou a Casta Diva. Que cousa ridícula! dizia consigo o
Rangel — uma música que até os moleques assobiam na rua. Olhava para ele,
de revés, para considerar se aquilo era posição de homem sério; e concluía que
a flauta era um instrumento grotesco. Olhou também para Joaninha, e viu que,
como todas as outras pessoas, tinha a atenção no Queirós, embebida, namorada
dos sons da música, e estremeceu, sem saber por quê. Os demais semblantes
mostravam a mesma expressão dela, e, contudo, sentiu alguma coisa que lhe
complicou a aversão ao intruso. Quando a flauta acabou, Joaninha aplaudiu
menos que os outros, e Rangel entrou em dúvida se era o habitual
acanhamento, se alguma especial comoção... Urgia entregar-lhe a carta.
Chegou a ceia. Toda a gente entrou confusamente na sala, e felizmente
para o Rangel, coube-lhe ficar defronte de Joaninha, cujos olhos estavam mais
belos que nunca e tão derramados, que não pareciam os do costume. Rangel
saboreou-os caladamente, e reconstruiu todo o seu sonho que o diabo do
Queirós abalara com um piparote. Foi assim que tornou a ver-se, ao lado dela,
na casa que ia alugar, berço de noivos, que ele enfeitou com os ouros da
imaginação. Chegou a tirar um prêmio na loteria e a empregá-lo todo em sedas
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e jóias para a mulher, a linda Joaninha — Joaninha Rangel — D. Joaninha
Rangel — D. Joana Viegas Rangel — ou D. Joana Cândida Viegas Rangel...
Não podia tirar o Cândida...
— Vamos, uma saúde, seu diplomático... faça uma saúde daquelas...
Rangel acordou; a mesa inteira repetia a lembrança do tio Rufino; a
própria Joaninha pedia-lhe uma saúde, como a do ano passado. Rangel
respondeu que ia obedecer; era só acabar aquela asa de galinha. Movimento,
cochichos de louvor; D. Adelaide, dizendo-lhe uma moça que nunca ouvira
falar o Rangel:
— Não? perguntou com pasmo. Não imagina; fala muito bem, muito
explicado, palavras escolhidas, e uns bonitos modos...
Comendo, ia ele dando rebate a algumas reminiscências, frangalhos de
idéias, que lhe serviam para o arranjo das frases e metáforas. Acabou e pôs-se
de pé. Tinha o ar satisfeito e cheio de si. Afinal, vinham bater-lhe à porta.
Cessara a farandolagem das anedotas, das pilhérias sem alma, e vinham ter
com ele para ouvir alguma cousa correta e grave. Olhou em derredor, viu todos
os olhos levantados, esperando. Todos não; os de Joaninha enviesavam-se na
direção do Queirós, e os deste vinham esperá-los a meio caminho, numa
cavalgada de promessas. Rangel empalideceu. A palavra morreu-lhe na
garganta; mas era preciso falar, esperavam por ele, com simpatia, em silêncio.
Obedeceu mal. Era justamente um brinde ao dono da casa e à filha.
Chamava a esta um pensamento de Deus, transportado da imortalidade à
realidade, frase que empregara três anos antes, e devia estar esquecida. Falava
também do santuário da família, do altar da amizade, e da gratidão, que é a flor
dos corações puros. Onde não havia sentido, a frase era mais especiosa ou
retumbante. Ao todo, um brinde de dez minutos bem puxados, que ele
despachou em cinco e sentou-se.
Não era tudo. Queirós levantou-se logo, dois ou três minutos depois,
para outro brinde, e o silêncio foi ainda mais pronto e completo. Joaninha
meteu os olhos no regaço, vexada do que ele iria dizer; Rangel teve um arrepio.
— O ilustre amigo desta casa, o Sr. Rangel — disse Queirós, — bebeu
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às duas pessoas cujo nome é o do santo de hoje; eu bebo àquela que é a santa
de todos os dias, a D. Adelaide.
Grandes aplausos aclamaram esta lembrança, e D. Adelaide,
lisonjeada, recebeu os cumprimentos de cada conviva. A filha não ficou em
cumprimentos. — Mamãe! mamãe! exclamou, levantando-se; e foi abraçá-la e
beijá-la três e quatro vezes; — espécie de carta para ser lida por duas pessoas.
Rangel passou da cólera ao desânimo, e, acabada a ceia, pensou em
retirar-se. Mas a esperança, demônio de olhos verdes, pediu-lhe que ficasse, e
ficou. Quem sabe? Era tudo passageiro, cousas de uma noite, namoro de São
João; afinal, ele era amigo da casa, e tinha a estima da família; bastava que
pedisse a moça, para obtê-la. E depois esse Queirós podia não ter meios de
casar. Que emprego era o dele na Santa Casa? Talvez alguma cousa reles...
Nisto, olhou obliquamente para a roupa de Queirós, enfiou-se-lhe pelas
costuras, escrutou o bordadinho da camisa, apalpou os joelhos das calças, a
ver-lhe o uso, e os sapatos, e concluiu que era um rapaz caprichoso, mas
provavelmente gastava tudo consigo, e casar era negócio sério. Podia ser
também que tivesse mãe viúva, irmãs solteiras... Rangel era só.
— Tio Rufino, toque uma quadrilha.
— Não posso; flauta depois de comer faz indigestão. Vamos a um
víspora.
Rangel declarou que não podia jogar, estava com dor de cabeça: mas
Joaninha veio a ele e pediu-lhe que jogasse com ela, de sociedade. — "Meia
coleção para o senhor, e meia para mim", disse ela, sorrindo; ele sorriu também
e aceitou. Sentaram-se ao pé um do outro. Joaninha falava-lhe, ria, levantava
para ele os belos olhos, inquieta, mexendo muito a cabeça para todos os lados.
Rangel sentiu-se melhor, e não tardou que se sentisse inteiramente bem. Ia
marcando à toa, esquecendo alguns números, que ela lhe apontava com o dedo,
— um dedo de ninfa, dizia ele, consigo; e os descuidos passaram a ser de
propósito, para ver o dedo da moça, e ouvi-la ralhar: "O senhor é muito
esquecido; olhe que assim perdemos o nosso dinheiro..."
Rangel pensou em entregar-lhe a carta por baixo da mesa; mas não
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estando declarados, era natural que ela a recebesse com espanto e estragasse
tudo; cumpria avisá-la. Olhou em volta da mesa: todos os rostos estavam
inclinados sobre os cartões, seguindo atentamente os números. Então, ele
inclinou-se à direita, e baixou os olhos aos cartões de Joaninha, como para
verificar alguma coisa.
— Já tem duas quadras, cochichou ele.
— Duas, não; tenho três.
— Três, é verdade, três. Escute...
— E o senhor?
— Eu duas.
— Que duas o quê? São quatro.
Eram quatro; ela mostrou-lhas inclinada, roçando quase a orelha pelos
lábios dele; depois, fitou-o rindo e abanando a cabeça: "O senhor! o senhor!"
Rangel ouviu isto com singular deleite; a voz era tão doce, e a expressão tão
amiga, que ele esqueceu tudo, agarrou-a pela cintura, e lançou-se com ela na
eterna valsa das quimeras. Casa, mesa, convivas, tudo desapareceu, como obra
vã da imaginação, para só ficar a realidade única, ele e ela, girando no espaço,
debaixo de um milhão de estrelas, acesas de propósito para alumiá-los.
Nem carta, nem nada. Perto da manhã foram todos para a janela ver
sair os convidados do baile fronteiro. Rangel recuou espantado. Viu um aperto
de dedos entre o Queirós e a bela Joaninha. Quis explicá-lo, eram aparências,
mas tão depressa destruía uma como vinham outras e outras, à maneira das
ondas que não acabam mais. Custava-lhe entender que uma só noite, algumas
horas bastassem a ligar assim duas criaturas; mas era a verdade clara e viva dos
modos de ambos, dos olhos, das palavras, dos risos, e até da saudade com que
se despediram de manhã.
Saiu tonto. Uma só noite, algumas horas apenas! Em casa, aonde
chegou tarde, deitou-se na cama, não para dormir, mas para romper em
soluços. Só consigo, foi-se-lhe o aparelho da afetação, e já não era o
diplomático, era o energúmeno, que rolava na casa, bradando, chorando como
uma criança, infeliz deveras, por esse triste amor do outono. O pobre-diabo,
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feito de devaneio, indolência e afetação, era, em substância, tão desgraçado
como Otelo, e teve um desfecho mais cruel.
Otelo mata Desdêmona; o nosso namorado, em quem ninguém
pressentira nunca a paixão encoberta, serviu de testemunha ao Queirós, quando
este se casou com Joaninha, seis meses depois.
Nem os acontecimentos, nem os anos lhe mudaram a índole. Quando
rompeu a guerra do Paraguai, teve idéia muitas vezes de alistar-se como oficial
de voluntários; não o fez nunca; mas é certo que ganhou algumas batalhas e
acabou brigadeiro.

(Machado de Assis)