quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Não somos santas

Texto de LYA LUFT

No começo diziam que eu escrevia mais para mulheres (o que é bobagem), e que minhas personagens femininas são mais fortes do que os homens (idem).
Rótulos são imprecisos e empobrecedores, mas o que se há de fazer.
Depois de O rio do meio, de 1976, passaram a dizer que eu defendia demais os homens. Devo ter do masculino uma visão mais positiva do que, parece, boa parte das mulheres.
Tive um pai amigo que desde criança me ensinou a cuidar da minha dignidade, e dois companheiros que me respeitaram como ser humano, empurrando-me para a frente e para cima.
No Rio, escrevi entre outras coisas que também os homens sofrem de solidão – na medida da solidão (ou da infantilidade) de suas mulheres –, que também querem ser amados, ouvidos, olhados, não só criticados e cobrados. Em palestras afirmo (para horror de muitas) que nós mulheres também sabemos ser muito chatas. Insatisfeitas, cobradoras, ásperas ou lamuriosas, frívolas e agitadas, chantagistas: nem sempre companheiras, poucas vezes cúmplices.
Está certo que andamos sobrecarregadas nesses tempos modernos, vacilando entre competência e beleza, correndo entre filhos e patrão, cartão de crédito ou momentinho de ócio escutando aquela música ou vendo aquele vídeo no sofá da sala em plena tarde. Sem que ninguém nos chame com voz grossa e fatigada, ô, mãããe . Sem o fantasma de tias ou avós, mão na cintura na soleira da porta da nossa culpa ancestral, criticando: “Mas como! A essa hora, aí atirada sem fazer nada?”
Mas repito que sabemos ser chatas, implicantes, indiscretas e críticas. E deixamos sozinho o nosso homem, que bem ou mal é o que está do nosso lado. Pois se for ruim demais, por que ainda estamos com ele? Não são só as mulheres que precisam falar e ser ouvidas: na sua linguagem e no seu ritmo, que não são os nossos, se pudessem abrir o coração (o que raramente fazem) muitos homens se queixariam de que ninguém os escuta em casa. A mulher grudada nos filhos ou na televisão, no telefone com a amiga; os filhos na rua, ou fechados no quarto; e com os amigos do bar ou do escritório, os homens falam de futebol, mulher, carro... raramente de si mesmos e de sua humanidade.
De modo que, sim, eu acho que não somos santas nem temos obrigação de ser, mas bem que aqui e ali valeria a pena olhar dentro de si, e ao lado, onde está aquele com quem afinal partilhamos a vida. Temos escutado o que ele diz ou o que nos diz o seu silêncio? Temos ainda lembrado de agradar, elogiar, sorrir, fazer carinho, ou estamos demais ocupadas?
Ainda pensamos nele, nas suas necessidades, emoções, desejos e fraquezas, como quando éramos namorados – ou estamos enroladas com as amigas, o bingo, o carteado, o escritório, o mais recente mexerico sobre artistas de televisão ou sobre a vizinha?
E se ele um dia, depois de dez anos ou mais de casamento acabado, há muito transformado em amizade, nos pedir sua liberdade, se quiser nos dar a dádiva melhor, da sinceridade, da lealdade verdadeira? Se nos propusesse: “Vamos aceitar que somos bons amigos mas viver separados” – a gente ia encarar com dignidade e afeto... ou recorrer à baixaria, cobrar, constranger, chantagear?
Não sei. Receio que responder seja tão duro quanto perguntar. Não acho que a gente deva ser boazinha, gueixa submissa ou serviçal ressentida. Nem a eterna vítima, a castradora disfarçada de mártir.
Importante seria não deixar que a poeira da banalidade abafasse o que havia entre a gente de encantamento e magia, ainda que o namorado agora seja um marido mais barrigudo, e menos cabeludo, que chega em casa cansado demais pra reparar no quanto estamos bonitas ou exaustas.
O bom seria que continuássemos amantes, sendo também amigos. Pois amor é amizade com sensualidade: se não gosto do outro com seus defeitos e qualidades, manias e até pequenas loucuras, como foi que o escolhi para viver comigo numa casa, na mesma mesa, cama e talvez todo o tempo de minha existência? E se isso se desgastou, por que não permito, a ele e a mim, mudarmos o nosso contrato de amantes para amigos e cúmplices ainda?
Embora gostemos de nos apresentar como incompreendidas ou mal tratadas, merecedoras de todas as compensações imagináveis, é bom ponderar que a mulher-vítima e a mãe-mártir inspiram culpa e aflição, e perturbam toda uma família.
Resta saber o que fizemos com aquela relação, com nossa própria vida, auto-estima e dignidade, e como temos afinal lidado com esse homem que um dia foi o objeto máximo de nosso desejo e sonho.