segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Prosper Mérimée...


Na minha adolescência um dos escritores que mais li e que me impressionou por suas histórias fantásticas foi o escritor francês Prosper Mérimée. O curioso foi que essa semana tentei pesquisar sobre sua vida e tive uma grande surpresa com a falta de informações na net, tudo que se fala é sobre uma de suas obras mais famosas: Carmen, que chegou inclusive a ser transformada em ópera por Bizet ...Acho que o nome desse autor vai sempre estar intimamente ligado ao de sua criação...



MÉRIMÉE PRECISO PORÉM ESCUSO



Alexandre Piccolo

Prosper Mérimée é um discreto narrador, como discreta foi sua vida. Uma vida feliz e rica em êxitos, regrada de cultura, compôs um homem delicado, observador, espirituoso, sociável, porém de uma desconfiança inata, de um sobreaviso constante. Sua profissão de inspetor de Monumentos Históricos proporcionou-lhe conhecimentos históricos, geográficos e lingüísticos diversos, dentre inúmeras outras experiências sem igual.

Sua excêntrica desconfiança talvez seja o ponto mais peculiar em sua personalidade, bem como em suas narrativas. Além de preciso e econômico com as palavras, Mérimée mantinha-se distante do objeto de sua narração, e mesmo participando como narrador e personagem, era um personagem ausente, distinto, que não se envolvia com o acontecimento narrado. Taine descreve bem sua posição receosa: "sua desconfiança fazia-o ficar de sobreaviso contra a emoção, o arrebatamento e o entusiasmo, nunca se entregar totalmente, reservar sempre parte de si mesmo, não se deixar lograr por outrem nem por si próprio, agir e escrever como na terna presença de um espectador indiferente e escarninho, ser ele mesmo esse espectador. Eis o traço que se lhe gravou no caráter cada vez com mais força para deixar um sinal em todas as partes da sua vida, da sua obra e do seu talento." [1]

Este narrador desconfiado está sem dúvida presente em "Venus de Ille", na qual os acontecimentos, por mais fantásticos e sobrenaturais que possam ser ou parecer, não afetam a decisão e opinião intocável do narrador. Sua posição superior parece impor-se diante dos fatos narrados, como se olhasse para tudo e para todos de uma visão distante, afastada e imparcial. A própria não elucidação do conto parece reforçar esta desconfiança, deixando intacta a resolução da história - segundo decisão do próprio leitor. "O fim da história deixa-nos suspenso, pela falta não de um desfecho, mas de uma solução... Ou melhor, o autor oferece-nos duas explicações igualmente válidas. Tudo pode ser explicado na história, por uma coincidência de fatos vulgares, e, se o leitor for um espírito positivo, poderá ficar satisfeito; mas precisamente a vulgaridade dos fatos cuja convergência bastaria para a explicação inclina-nos a desejar e sugere-nos uma interpretação maravilhosa, da qual ele é o instigador se ser o responsável." [2]

O narrador é investigativo e cauteloso, sem jamais proferir uma palavra sequer a respeito da elucidadação do mistério sem uma única prova conclusiva. Chega a ser esquivo já que não há evidências concretas para uma explicação satisfatória. O trecho em que procura por possíveis pistas deixadas na noite anterior é ilustrativo: "Debalde percorria a casa, procurando por toda parte traços de arrombamento. Desci ao jardim para verificar se os assassinos teriam tido possibiliadades de introduzir-se por aquiele lado; mas não encontrei o mínimo indício positivo. A chuva da véspera de tal modo ensopara o solo, que nele não havia rastos bastante nítidos. Entretanto, viam-se algumas pegadas profundamente impressas na terra; seguiam duas direções opostas, mas no mesmo rumo, pois partiam da cerca contígua ao campo de péla, e desembocavam na porta da casa e vice-versa. Podiam ser os passos do Sr. Alphonse quando fora buscar o anel no dedo da estátua. Além disso a cerca era menos espessa nesse lugar do que em qualquer outro ponto. Passando e repassando diante da estátua, detive-me um momento para examiná-la. Forçoso é confessar que não pude contemplar-lhe a expressão perversa do rosto sem um sentimento de terror; e, com a cabeça ainda repleta de cenas impressionantes, que acabara de testemunhar, não é de estranhar que me assaltasse a impressão de que aquela infernal divindade festejava a desgraça desferida sobre a casa." [3]

Mérimée é um narrador que conta exatamente o que vê, sem mais ou menos palavras do que o absolutamente necessário. Ele não é elucidativo quando não encontra as provas para tal, mantendo intacta sua posição, preservando-se de qualquer erro ou confusão. Percebe-se em seu relato uma sutil desconfiança diante dos acontecimentos "sobrenaturais" porém ele não se deixa levar por qualquer explicação - seu voto permanece, como se desviasse de qualquer hipótese. "Mérimée não crê que Deus existe, mas não está muito seguro que o Diabo não existe." [4]

Valery Larbaud, lembrado por Paulo Rónai, faz um belo comentário a respeito do escritor e de sua obra: "Mérimée não age de imediato sobre o espírito do leitor. O efeito só começa depois de acabada a leitura. Secamente, quase que pobremente, ele desenhou as atitudes de suas personagens, contando muito depressa o que fizeram; e, depois, escamoteou-as, matou-as na maioria dos casos, suprimiu-as, como bonecos atirados ao fogo após uma breve representação, ou como figuras dos baralhos dos clubes que são renovados de cada partida. Mas é então que elas começam a viver. Nossa imaginação põe-se a reconstruir a novela, momento por momento, ação por ação, a tal ponto que acontece colaborarmos com o autor, inventarmos aqui ou ali um pormenor. Mas, relendo-o (e Mérimée é para ser relido), vemos que esse detalhe estava indicado, incluído num membro de frase, numa palavra, e que nos fora sugerida à nossa revelia." [5]



Referências Bibliográficas

[1] Rónai, Paulo, Mérimée Contista, Carmen e outros contos, editora Ediouro, págs. 10 e 11

[2] Idem, ibidem, pág. 14

[3] Mérimée, Prosper, A Vênus de Ille, Carmen e outros contos, editora Ediouro, págs. 152 e 153 - grifos meus.

[4] Rónai, Paulo, Mérimée Contista, palavras de Saint-Beuve, Carmen e outros contos, editora Ediouro, págs. 10 e 11

[5] Rónai, Paulo, Mérimée Contista, palavras de Valery Larbaud, Carmen e outros contos, editora Ediouro, pág. 15