terça-feira, 8 de abril de 2008

Um Conto de Agatha Christie


O ESTRANHO CASO DE SIR ANDREW CARMICHAEL
(Extraído das anotações do Dr. Edward
Carstairs, ilustre psicólogo, já falecido.)


Sei perfeitamente que há duas maneiras distintas de encarar os curiosos e
trágicos acontecimentos que passo a registrar aqui. Quanto a mim,
pessoalmente, nunca mudei de opinião. Aconselharam-me a escrever toda a
história em detalhes e creio mesmo que a minha obrigação para com a ciência é
não permitir que fatos tão estranhos e inexplicáveis fiquem relegados ao
esquecimento.
Foi por intermédio do telegrama de um amigo, o Dr. Settle, que entrei
pela primeira vez em contato com o caso. Além de mencionar o nome
Carmichael, o telegrama não era nada explícito, mas tratei logo de pegar em
Paddington, o trem das 12h20m para Wolden, em Herefordshire.
O nome de Carmichael não me era estranho. Eu havia conhecido
ligeiramente o falecido Sir William Carmichael de Wolden, embora não o
tivesse mais visto durante os últimos onze anos. Sabia que tinha um filho, o
atual baronete, que já devia ser um rapaz de seus vinte e três anos. Lembravame
vagamente de certos boatos em torno do segundo casamento de Sir William,
mas a única idéia bem definida que guardava na memória era uma impressão
nada favorável da segunda. Lady Carmichael.
Settle estava me esperando na estação.
— Que bom você ter vindo — disse, apertando-me a mão.
— Não fiz mais que minha obrigação. Parece que o caso tem algo que ver
com a minha especialidade, não?
— Muito, por sinal.
— Trata-se de um problema psíquico, então? — arrisquei. — Que
apresenta aspectos fora do comum?
A essa altura já tínhamos recolhido a minha bagagem e estávamos
sentados num cabriolé, a caminho de Wolden, que distava cerca de cinco
quilômetros da estação. Settle demorou um pouco para responder. De repente
desabafou:
— Não dá pra entender essa história! Imagine você um rapaz de vinte e
três anos, completamente normal em todos os sentidos, o tipo do sujeito
simpático, amável, um pouquinho presunçoso, o que é explicável, sem nada de
excepcionalmente inteligente, talvez, mas, enfim, o verdadeiro protótipo do
jovem inglês de classe superior. Uma noite ele vai pra cama com a saúde de
sempre e no dia seguinte é encontrado perambulando pela aldeia, num estado
de semi-imbecilidade, incapaz de reconhecer as pessoas que lhe são mais caras e
próximas.
— Ah! — exclamei, entusiasmado. O caso prometia ser interessante. —
Perda total de memória? E isso aconteceu...
— Ontem de manhã. Nove de agosto.
— E não houve nada... nenhum choque que você saiba... pra explicar esse
estado?
— Nada.
Veio-me uma súbita suspeita.
— Você não está me escondendo alguma coisa?
— N... não.
A hesitação dele confirmou a minha suspeita.
— Eu preciso saber de tudo.
— Não tem nada que ver com o Andrew... é com... com a casa.
— Com a casa? — repeti, espantado.
— Você tem lidado muito com essa espécie de coisa, não é, Carstairs? Já
“testou” uma porção de casas supostamente “mal-assombradas”. Qual é a sua
opinião sobre o assunto?
— Em cada dez casos, nove são vigarices — respondi. — Só que o
décimo... bem, já deparei com fenômenos absolutamente inexplicáveis do ponto
de vista materialista comum. Eu acredito nas forças ocultas.
Settle concordou com a cabeça. Naquele momento acabávamos de cruzar
pelos portões do parque. Ele apontou o chicote para uma mansão branca e baixa
na encosta de um morro.
— Lá está a casa — disse. — Sabe... há qualquer coisa sinistra... horrível...
naquela casa. Todos nós sentimos... E olhe que eu não sou supersticioso, hem?
— Que tipo de assombração é? — perguntei. Ele olhou bem para a frente.
— Prefiro não lhe dizer nada. Sabe como é, se você... chegando aqui sem
prevenção nenhuma... e ignorando por completo a situação... também visse...
bem, aí...
— Sim — concordei, — tem razão, é melhor assim. Mas eu gostaria que
você me contasse mais coisas sobre a família.
— Sir William — disse Settle — casou duas vezes. O Andrew é filho da
primeira mulher. Faz nove anos que ele casou de novo e a atual Lady
Carmichael é meio misteriosa. Pode ser que seja inglesa, mas desconfio de que
tem sangue asiático.
Fez uma pausa.
— Settle — disse eu, — você não gosta de Lady Carmichael.
— Não gosto, não — confessou francamente. — Sempre me pareceu que
há qualquer coisa de sinistro em torno dela. Bem, mas como ia dizendo, a
segunda mulher deu à luz outro filho, também varão, que hoje está com. oito
anos. Sir William morreu há três anos e o Andrew herdou o título e a casa. A
madrasta e o irmão por parte de pai continuaram morando com ele aqui em
Wolden. Devo dizer a você que a propriedade se acha praticamente arruinada.
Quase toda a renda de Sir Andrew é gasta na sua manutenção. Sir William
deixou apenas algumas centenas de libras anuais para a esposa, mas o Andrew
felizmente sempre se entendeu bem com a madrasta e ficou encantado em
morar com ela. Ora...
— Sim?
— Dois meses atrás, o Andrew noivou com uma graça de moça, uma tal
de Miss Phyllis Patterson. — E, baixando a voz com um toque de emoção,
acrescentou: — Os dois deveriam casar no mês que vem. Ela está atualmente
hospedada aqui.. Imagine só a aflição dela...
Curvei a cabeça, calado.
Já estávamos perto da casa. À nossa direita, o gramado verde descia
suavemente pela encosta abaixo. De repente vi uma cena simplesmente
deslumbrante. Uma jovem subia o gramado em direção à casa. Não usava
chapéu e o sol realçava--lhe o brilho do glorioso cabelo dourado. Trazia uma
grande cesta de rosas na mão e um belo gato persa cinzento se enroscava
carinhosamente entre seus pés, quando caminhava.
Olhei para Settle com uma expressão interrogativa.
— Aquela é a Miss Patterson — disse ele.
— Coitada — comentei, — coitada. Que lindo quadro que ela faz com
aquelas rosas e aquele gato cinzento.
Ouvi um leve ruído e me virei rapidamente para o meu amigo. As rédeas
tinham-lhe escapado dos dedos e seu rosto estava completamente branco.
— Que foi? — exclamei.
Ele custou a se refazer.
— Nada — respondeu, — nada.
Ao cabo de alguns instantes chegamos e entrei atrás dele na sala verde de
visitas, onde o chá estava sendo servido.
Uma mulher já madura, mas ainda bonita, levantou-se e veio ao nosso
encontro de mão estendida.
— Este é o meu amigo Dr. Carstairs, Lady Carmichael.
Não saberia explicar a onda de repulsa instintiva que me invadiu ao
pegar a mão daquela mulher. Bonita e imponente, movia-se com uma graça
morena e langorosa que parecia confirmar as suspeitas de Settle sobre seu
possível sangue oriental.
— Foi muito gentil em vir, Dr. Carstairs — disse, com voz grave, musical,
— para tentar ajudar a resolver nosso grande problema.
Dei uma resposta trivial qualquer e ela me passou o chá.
Não demorou muito, a moça que eu tinha visto no gramado lá fora
entrou na sala. Não estava mais com o gato, mas ainda trazia a cesta de rosas na
mão. Settle nos apresentou e ela se adiantou, impulsivamente.
— Ah! Dr. Carstairs, o Dr. Settle nos falou tanto sobre o senhor. Tenho a
sensação de que poderá fazer alguma coisa pelo pobre do Andrew.
Miss Patterson, não há que negar, era lindíssima, embora fosse pálida e
tivesse fundas olheiras.
— Minha cara — disse, tranqüilizador, — não precisa ficar desesperada.
Esses casos de perda de memória, ou de dupla personalidade, quase sempre são
de curta duração. A qualquer momento o paciente pode recobrar o pleno uso de
suas faculdades mentais.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não acredito que seja caso de dupla personalidade — disse. — Isso
não tem nada do Andrew. Não é a personalidade dele. Não é ele. Eu...
— Phyllis, querida — atalhou a voz suave de Lady Carmichael, — aqui
está o seu chá.
E qualquer coisa na expressão dos olhos dela ao pousarem na moça me
deram a certeza de que Lady Carmichael não gostava da futura nora.
Miss Patterson recusou o chá e eu, para amenizar o tom da conversa,
perguntei:
— O gatinho não vai ganhar um pouco de leite?
Ela me olhou de modo meio estranho.
— O... gatinho?
— É, o seu companheiro de poucos minutos atrás, no jardim...
Um estrondo me interrompeu. Lady Carmichael tinha virado a chaleira
do chá, derramado a água quente por todo o soalho. Enquanto eu fazia o que
podia para remediar a situação, Phyllis Patterson olhou para Settle com uma
expressão interrogativa. Ele se levantou.
— Você não quer ver o paciente agora, Carstairs?
Fui imediatamente atrás dele. Miss Patterson nos acompanhou. Subimos
a escada e Settle tirou uma chave do bolso.
— Às vezes ele tem a mania de sair perambulando por aí — explicou. —
Por isso em geral tranco a porta quando saio de casa.
Girou a chave na fechadura e nós entramos no quarto.
Havia um rapaz sentado junto à janela, onde os últimos raios de sol
caíam em cheio. Estava parado de uma maneira curiosa, meio curvado, com
todos os músculos relaxados. A princípio julguei que não tivesse percebido
nossa presença, mas de repente notei que, sob as pálpebras imóveis, nos
observava atentamente. Ao encontrarem os meus, seus olhos baixaram e
pestanejaram. Mas ele não se mexeu.
— Venha, Andrew — disse Settle, alegremente. — Miss Patterson e um
amigo meu vieram fazer uma visita a você.
Mas o rapaz sentado à janela se limitou a pestanejar. Pouco depois,
porém, vi que nos observava de novo — furtiva e dissimuladamente.
— Quer chá? — perguntou Settle, sempre em voz alta e alegre, como se
estivesse falando com uma criança.
Colocou na mesa uma xícara cheia de leite. Arqueei as sobranchelhas,
surpreso, e Settle sorriu.
— Engraçado — disse, — a única bebida que ele suporta é leite.
Não demorou muito, sem se apressar demais, Sir Andrew desenroscouse,
membro por membro, da posição encolhida em que estava e dirigiu-se
lentamente à mesa. De repente me dei conta de que seus movimentos eram
completamente silenciosos, que os pés não faziam barulho ao pisar no chão.
Assim que chegou à mesa, espreguiçou-se de uma maneira incrível, apoiandose
numa perna e espichando a outra para trás. Prolongou esse exercício ao
máximo, e depois bocejou. Nunca vi bocejo igual! Parecia que ia engolir a cara
inteira.
Aí então voltou sua atenção para o leite, debruçando-se sobre a mesa até
que os lábios tocassem na bebida.
Settle respondeu ao meu olhar de interrogação.
— Não quer saber de usar as mãos. Parece que regrediu a uma fase
primitiva. Que estranho, não é?
Senti que Phyllis Patterson se encolhia um pouco contra mim, e pouseilhe
a mão no braço, para tranqüilizá-la.
O leite por fim acabou e Andrew Carmichael espreguiçou-se mais uma
vez. Depois, com o mesmo passo absolutamente silencioso, voltou à poltrona da
janela, onde se sentou, agachado como antes, pestanejando para nós.
Miss Patterson puxou-nos para o corredor. Tremia dos pés à cabeça.
— Ah! Dr. Carstairs — exclamou. — Não é ele... esse negócio que está aí
dentro não é o Andrew! Eu sentiria... eu saberia.. .
Sacudi tristemente a cabeça.
— O cérebro é capaz das coisas mais estranhas, Miss Patterson.
Confesso que estava intrigado com o caso. Apresentava aspectos fora do
comum. Embora nunca tivesse visto antes o jovem Carmichael, havia qualquer
coisa na sua estranha maneira de caminhar e no modo como pestanejava que
me lembrava alguém ou algo que não conseguia definir direito.
Naquela noite o nosso jantar transcorreu calmamente, a conversa
correndo por conta de Lady Carmichael e de mim mesmo. Depois que as
mulheres se retiraram, Settle perguntou qual a impressão que eu havia tido da
minha anfitriã.
— Devo confessar — respondi, — que sem a menor causa ou motivo,
antipatizo solenemente com ela. Você tinha toda a razão, ela possui sangue
oriental e, a meu ver, acentuados poderes ocultos. É uma mulher de incrível
força magnética.
Settle parecia prestes a dizer alguma coisa, mas se conteve, limitando-se
a observar pouco depois:
— Ela vive praticamente só para o filho menor.
Em seguida ao jantar, fomos sentar de novo na sala verde de visitas.
Tínhamos terminado de tomar café e conversávamos meio cerimoniosamente
sobre os assuntos do dia, quando o gato se pôs a miar da maneira mais
comovente do lado de fora da porta, pedindo para entrar. Ninguém prestou a
mínima atenção e eu, como gosto muito de bichos, daí a pouco me levantei.
— Posso deixar o pobrezinho entrar? — perguntei a Lady Carmichael.
Tive a impressão de que estava com o rosto muito pálido, mas fez um
gesto com a cabeça que interpretei como uma aquiescência e então fui abrir a
porta. Mas encontrei o corredor totalmente deserto.
— Que estranho — comentei. — Seria capaz de jurar que tinha ouvido
um gato miar.
Ao voltar para o meu lugar, notei que todos me observavam
atentamente. Não sei por que, mas aquilo me deixou meio constrangido.
Recolhemo-nos cedo. Settle me acompanhou até o quarto.
— Tem tudo que você precisa? — perguntou, olhando em torno.
— Tenho sim, obrigado.
Mas ele se demorou ainda um pouco, sem jeito, como se quisesse tratar
de um assunto que não tivesse coragem de abordar.
— A propósito — comentei, — você não falou que havia qualquer coisa
de sinistro nesta casa? Por enquanto me parece perfeitamente normal.
— Acha que seja uma casa alegre?
— Bem, isso também não, devido às circunstâncias atuais. É óbvio que
está passando por uma grande dor. Mas quanto a qualquer influência anormal,
eu não hesitaria em lhe dar um atestado de saúde perfeita.
— Boa noite — retrucou Settle abruptamente. — E bons sonhos.
Sonhar, não há que negar que sonhei. O gato cinzento de Miss Patterson,
pelo visto, não me saía da idéia. Tive impressão de sonhar a noite inteira com o
maldito animal.
De repente acordei assustado e percebi o motivo por que não conseguia
esquecer o tal gato. O danado não parava de miar do lado de fora do meu
quarto. Impossível dormir com aquele alarido. Acendi a vela e fui abrir a porta.
Mas embora o miado persistisse, o corredor estava vazio. Ocorreu--me outra
idéia: “Vai ver que o infeliz ficou trancado nalgum canto e não pode sair.” O
fundo do corredor era à esquerda, onde se achava situado o quarto de Lady
Carmichael. Dirigi-me, portanto, para o lado oposto, mas mal tinha dado os
primeiros passos quando o barulho recomeçou atrás de mim. Virei-me
bruscamente e tornei a ouvir o mesmo miado, desta vez nitidamente à minha
direita.
Qualquer coisa, no mínimo alguma correnteza de ar no corredor, me
provocou um calafrio e voltei logo para meu quarto. Agora reinava ali o mais
absoluto silêncio e não tardei muito a pegar de novo no sono — para despertar
noutro dia glorioso de verão.
Enquanto me vestia, avistei da janela o perturbador do meu repouso
noturno. O gato cinzento deslizava lenta e furtivamente pelo gramado. Julguei
que fosse atacar um pequeno bando de passarinhos que trinava, alisando as
penas com o bico, a pouca distância.
Mas aí aconteceu uma coisa estranhíssima. O gato se aproximou e passou
direto pelo meio dos passarinhos, quase roçando o pelo contra eles — que nem
levantaram vôo. Não dava para entender — parecia absurdo.
Fiquei tão impressionado com o fato que não pude deixar de mencionálo
na mesa do café.
— A senhora sabe que tem um gato totalmente fora do comum?
Ouvi logo um tilintar de xícara contra o pires e notei que Phyllis
Patterson, de lábios entreabertos e respiração ofegante, me olhava fixamente.
Houve um silêncio momentâneo e depois Lady Carmichael, de um jeito
francamente antipático, respondeu:
— O senhor deve ter-se enganado. Aqui em casa não há gatos. Nunca
tive gato nenhum.
Era evidente que eu tinha metido os pés pelas mãos da pior maneira
possível, por isso me apressei a mudar de assunto.
Mas aquilo me deixou intrigado. Por que Lady Carmichael afirmava que
não havia nenhum gato na casa? Pertenceria, talvez, a Miss Patterson e a dona
da casa ignorava sua presença ali? Lady Carmichael era bem capaz de ter uma
dessas estranhas aversões por gatos, tão comuns hoje em dia. Não me parecia
uma explicação plausível, mas me vi forçado a me contentar provisoriamente
com ela.
Nosso paciente continuava no mesmo estado. Desta vez lhe fiz um
exame completo e pude analisá-lo mais minuciosamente do que na véspera. Por
minha sugestão, providenciou--se para que passasse a maior parte do tempo em
companhia da família. Com isso eu esperava não só dispor de uma
oportunidade melhor para observá-lo quando estivesse desprevenido, como
também que a rotina cotidiana normal pudesse avivar-lhe alguma centelha de
inteligência. Sua conduta, porém, permaneceu imutável. Andava sempre quieto
e dócil, parecia distraído, mas na realidade ficava sempre atento a tudo, de uma
maneira intensa e bastante sorrateira. Uma coisa certamente me surpreendeu —
a grande afeição que demonstrava pela madrasta. Ignorava Miss Patterson por
completo, mas sempre dava um jeito de se sentar bem perto de Lady
Carmichael, e uma vez o surpreendi esfregando a cabeça contra o ombro dela
numa muda manifestação de carinho.
Fiquei preocupado com o caso. Não podia deixar de sentir que havia
uma pista para tudo aquilo que, por enquanto, não atinava qual fosse.
— Que caso mais estranho — declarei a Settle.
— Sim — concordou, — é muito... sugestivo.
Olhou para mim — meio furtivamente, achei.
— Me diga uma coisa — continuou. — O Andrew... não lhe lembra
nada?
Essas palavras me causaram um efeito desagradável, me fazendo pensar
na impressão que tinha sentido na véspera.
— Me lembra, como? — perguntei.
Ele sacudiu a cabeça.
— Talvez seja imaginação minha — murmurou. — Pura imaginação.
E não quis mais tocar no assunto.
Havia um mistério impenetrável em torno do caso. Eu ainda continuava
obcecado pela sensação desconcertante de ter deixado escapar a pista que me
esclareceria tudo. E também havia mistério em torno de um ponto menos
importante. Refiro-me ao episódio insignificante do gato cinzento. Por um
motivo ou outro, aquilo já estava me dando nos nervos. Sonhava com gatos —
tinha a impressão constante de ouvi--los miar. De vez em quando via ao longe,
de relance, o belo animal. E o fato de existir algum mistério relacionado com ele
me irritava de uma forma insuportável. Uma tarde, cedendo a um impulso
súbito, recorri ao criado para obter a informação que me interessava.
— Você pode me dizer uma coisa sobre o gato que estou sempre vendo
por aí? — perguntei.
— Gato, doutor?
Parecia respeitosamente surpreso.
— Não havia... não há, aliás, um gato aqui na casa?
— A patroa já teve um gato, doutor. Um grande bichano de estimação.
Mas tivemos que dar fim nele. Uma pena pois era um belo animal.
— Um gato cinzento? — perguntei, cauteloso.
— Sim senhor. Persa.
— E você diz que ele foi destruído?
— Sim senhor.
— Tem absoluta certeza disso?
— Ah, absoluta, doutor! A patroa não quis mandar chamar o
veterinário... fez tudo sozinha. Faz pouco menos de uma semana. Foi
enterrado debaixo daquele pé de faia comum, doutor.
E retirou-se da sala, me deixando a sós com os meus pensamentos.
Por que Lady Carmichael afirmava tão categoricamente que nunca tinha
tido um gato?
Minha intuição me dizia que esse detalhe aparentemente sem
importância do gato era, de certo modo, significativo. Procurei Settle e levei-o
para um canto.
— Settle — disse. — Quero fazer-lhe uma pergunta. Você nunca viu ou
ouviu um gato aqui nesta casa?
Não pareceu surpreso com a pergunta. Eu até diria que já esperava por
ela.
— Ouvir, eu já ouvi — respondeu. — Mas nunca vi.
— Como? — exclamei. — E aquele primeiro dia, no gramado com Miss
Patterson?
Encarou-me bem firme.
— Eu vi Miss Patterson caminhando pelo gramado. Mais nada.
Comecei a compreender.
— Quer dizer então — retruquei, — que o gato...?
Ele confirmou com a cabeça.
— Eu queria ver se você... com o espírito desprevenido... ouviria o que
todos nós ouvimos...
— Ah, mas então vocês também ouvem os miados dele?
Ele confirmou de novo.
— Que estranho — murmurei, pensativo. — Jamais ouvi falar de um
gato fazendo assombrações.
Contei-lhe o que o criado tinha me informado. Ele manifestou-se
surpreso.
— Isso pra mim é novidade. Não sabia disso.
— Mas que sentido pode ter? — perguntei, desesperado.
Ele sacudiu a cabeça.
— Deus sabe lá! Mas lhe digo uma coisa, Carstairs... eu estou com medo.
Aquele... aquele miado tem um tom de... ameaça.
— Ameaça? — retruquei vivamente. — Para quem?
Ele espalmou as mãos.
— Como posso saber?
Foi só depois do jantar daquela noite que me dei conta do que ele queria
dizer. Estávamos sentados na sala verde, tal como na noite da minha chegada,
quando se ouviu — o miado forte, insistente, de um gato do lado de fora da
porta. Mas desta vez havia um traço inconfundível de cólera no seu tom — um
feroz uivo felino, prolongado e ameaçador. E por fim, quando cessou, o gancho
de metal do outro lado da porta foi sacudido violentamente como que por uma
pata.
Settle se levantou de um pulo.
— Juro que isso não é imaginação — exclamou.
Correu à porta e escancarou-a.
Não havia nada ali.
Voltou enxugando a testa. Phyllis estava pálida e trêmula, Lady
Carmichael branca como um cadáver. Só Andrew, feliz da vida, a cabeça
aninhada no colo da madrasta, parecia calmo e imperturbável.
Miss Patterson pousou a mão no meu braço quando subimos a escada.
— Ah, Dr. Carstairs! — exclamou. — Que será isso? Que significam todas
essas coisas?
— Por enquanto ainda não sabemos, minha filha — respondi. — Mas
pretendo descobrir. Não precisa ter medo. Estou convencido de que não há
nenhum perigo pessoal para você.
Ela me olhou, meio em dúvida.
— Acha que não?
— Tenho certeza — afirmei.
Lembrei-me da maneira carinhosa com que o gato cinzento havia-se
enroscado entre seus pés e não tive mais dúvidas. A ameaça não pairava sobre
ela.
Demorei um pouco a pegar no sono, mas por fim caí num cochilo
inquieto, do qual despertei com uma sensação de choque. Escutei um barulho
de arranhão, de estalo, como se estivessem arrancando ou rasgando
violentamente qualquer coisa. Saltei da cama e saí como uma bala para o
corredor. No mesmo instante Settle surgiu à porta do seu quarto, que ficava
defronte ao meu. O barulho vinha do meu lado esquerdo.
— Você está ouvindo, Carstairs? — exclamou ele. — Está ouvindo?
Corremos logo até a porta de Lady Carmichael. Não tinha passado nada
por nós, mas o barulho parou. Nossas velas se refletiam de leve nas brilhantes
almofadas da porta de Lady Carmichael. Entreolhamo-nos fixamente.
— Sabe o que era? — perguntou ele à meia-voz.
Acenei com a cabeça.
— As unhas de um gato puxando e rasgando alguma coisa.
Senti um calafrio. De repente soltei uma exclamação e baixei a vela que
estava segurando.
— Olhe isto aqui, Settle.
“Isto aqui” era uma cadeira encostada à parede — cujo assento tinha sido
puxado e rasgado em longas tiras...
Nós a examinamos minuciosamente. Ele olhou para mim e confirmei
com a cabeça.
— Unhas de gato — disse ele, respirando com veemência. —
Inconfundíveis. — Virou-se da cadeira para a porta fechada. — Eis aí a pessoa
que está ameaçada: Lady Carmichael!
Não consegui dormir mais naquela noite. As coisas tinham chegado a tal
ponto que era preciso fazer algo. Para mim, só existia uma pessoa de posse da
chave da situação. Desconfiei que Lady Carmichael soubesse mais do que
pretendia.
Ela estava mortalmente pálida quando desceu no outro dia de manhã e
mal tocou na comida que tinha no prato. Eu seria capaz de garantir que só uma
vontade de ferro a mantinha em pé. Depois do café, pedi para lhe falar em
particular. Fui direto ao assunto.
— Lady Carmichael — comecei. — Tenho motivos para crer que a
senhora corre um perigo gravíssimo.
— Não brinque — retrucou, com maravilhosa despreocupação.
— Nesta casa — continuei, — existe uma Coisa... uma Presença... que lhe
é francamente hostil.
— Que bobagem — murmurou, com desdém. — Como se eu fosse
acreditar numa asneira dessas.
— Na noite passada — frisei secamente, — a cadeira diante da sua porta
ficou reduzida a frangalhos.
— É mesmo? — Arqueou as sobrancelhas, fingindo-se surpresa, mas
percebi que aquilo não era novidade para ela. — No mínimo, alguma
brincadeira de mau gosto.
— Nada disso — protestei, com certa ênfase. — E quero que a senhora
me conte... para o seu próprio bem... — Parei.
— Conte o quê? — perguntou-me.
— Tudo o que possa esclarecer esse assunto — disse, bem sério.
Ela riu.
— Não sei de nada — afirmou. — Absolutamente nada.
E nem advertindo-a do perigo que corria consegui fazê-la mudar de
atitude. No entanto estava convencido de que ela sabia realmente muito mais
do que qualquer um de nós, e de que possuía uma pista que ignorávamos por
completo. Mas percebi que era totalmente impossível obrigá-la a falar. Resolvi,
porém, tomar todas as precauções a meu alcance, pois tinha certeza de que
Lady Carmichael estava ameaçada por um perigo real e imediato. Antes que se
recolhesse na noite seguinte, Settle e eu passamos uma vistoria rigorosa em seu
quarto. E combinamos nos revezar para ficar cuidando do corredor.
Eu me encarreguei do primeiro turno, que transcorreu sem incidentes, e
às três horas Settle me substituiu. Sentia-me cansado depois da noite insone da
véspera e peguei logo no sono. E tive um sonho curioso.
Sonhei que o gato cinzento estava sentado ao pé da minha cama, com os
olhos fixos nos meus, num estranho ar de súplica. Aí, com a facilidade dos
sonhos, percebi que ele queria que eu saísse atrás dele. Saí, e ele foi na frente,
descendo a grande escadaria e tomando a direção da ala oposta da casa, até
chegar a uma sala que era evidentemente a biblioteca. Parou ali num canto e
ergueu as patas dianteiras, pousando-as numa das prateleiras de livros mais
baixas, enquanto me fixava de novo aquele olhar comovente de súplica.
Depois o gato e a biblioteca sumiram e eu acordei, descobrindo que já
havia amanhecido.
A vigília de Settle também transcorrera sem incidentes, mas ele se
mostrou interessadíssimo quando lhe contei o sonho. Pedi que me levasse à
biblioteca, que coincidia nos mínimos detalhes com a visão que havia tido dela.
Pude inclusive indicar o lugar exato em que o animal tinha-me lançado aquele
último olhar de tristeza.
Ficamos parados ali em muda perplexidade. De repente me veio uma
idéia e me curvei para ler os títulos dos livros no canto que já mencionei. Notei
a existência de uma brecha entre os volumes.
— Tiraram um livro daqui — declarei a Settle.
Ele também se curvou para a prateleira.
— Olhe só — disse ele. — Aqui atrás há um prego que arrancou um
pedaço do volume que falta.
Destacou com cuidado o pedacinho de papel. Não tinha mais que uns
três centímetros quadrados — mas trazia impresso duas palavras muito
significativas: “O gato...”
Entreolhamo-nos.
— Este negócio já está me dando arrepios — disse Settle. — É a coisa
mais sinistra que vi em toda a minha vida.
— Eu só queria saber que livro é esse que está faltando aqui. Você acha
que existe meio de descobrir?
— Talvez haja um catálogo por aí. Quem sabe se Lady Carmichael...
Sacudi a cabeça.
— Lady Carmichael não nos dirá nada.
— Acha que não?
— Tenho certeza. Enquanto a gente fica tentando adivinhar, tateando no
escuro, Lady Carmichael sabe. E pelo jeito tem motivos pessoais para continuar
calada. Prefere correr o pior dos riscos a romper o silêncio.
O dia se passou numa monotonia que me fez lembrar a calmaria antes da
tempestade. E tive a estranha sensação de que o problema estava em vias de ser
solucionado. Continuava tateando no escuro, mas em breve poderia enxergar.
Os fatos estavam todos ali, prontos, à espera do pequeno clarão de luz que os
ligasse entre si, revelando seu significado.
E ele de fato veio! Da maneira mais estranha!
Foi quando nos achávamos todos reunidos na sala verde, como sempre,
depois do jantar. Quase ninguém abria a boca para falar. O ambiente estava tão
quieto mesmo, que de repente um ratinho passou correndo pelo soalho — e
num segundo a coisa aconteceu.
Com um pulo enorme, Andrew Carmichael saltou da cadeira. Seu corpo
inseguro partiu como uma flecha no encalço do rato, que tinha desaparecido
atrás do lambril, e ficou agachado ali — à espreita — trêmulo de expectativa.
Foi medonho! Jamais passei por outro momento tão paralisante como
aquele. Não tive mais dúvidas quanto ao que Andrew Carmichael me lembrava
com seus passos furtivos e olhares atentos. E como um raio, me veio a
explicação, violenta, incrível, inconcebível. Rejeitei-a como inadmissível,
inimaginável! Mas não pude tirá-la da idéia.
Não me lembro direito do que aconteceu depois. Tudo parecia confuso e
irreal. Só sei que conseguimos subir a escada e trocar nossos boas-noites
rapidamente, quase com medo de nos olharmos nos olhos, para não enxergar
neles alguma confirmação de nossos próprios temores.
Settle postou-se diante da porta de Lady Carmichael para cumprir o
primeiro turno da vigília, ficando combinado que me chamaria às três da
madrugada. Não era por Lady Carmichael que eu receava agora: estava
ocupado demais com aquela minha teoria fantástica, inadmissível. Dizia a mim
mesmo que era impossível — mas não podia tirá-la da idéia, fascinado.
E aí então, de repente, um grito estremeceu a quietude da noite: a voz de
Settle, me chamando. Saí para o corredor como uma bala.
Ele martelava e batia com força na porta de Lady Carmichael.
— Diabo que a carregue! — exclamou. — Ela se trancou por dentro!
— Mas...
— O troço está aí dentro, rapaz! Aí com ela! Não está ouvindo?
Detrás da porta trancada vinha o miado feroz, prolongado, de um gato. E
logo em seguida um grito horrível — e depois outro... Reconheci a voz de Lady
Carmichael.
— A porta! — berrei. — Temos que arrombá-la. Daqui a pouco será tarde
demais.
Metemos os ombros contra ela, e empurramos com toda a força. Deu um
estrondo — e quase caímos dentro do quarto.
Lady Carmichael jazia na cama, banhada em sangue. Poucas vezes vi
quadro mais horrendo. O coração ainda batia, mas os ferimentos eram terríveis,
pois a pele da garganta estava toda arrancada e dilacerada... Horrorizado,
murmurei: — “As unhas...” — E me passou um calafrio de terror supersticioso
pela espinha.
Fiz os curativos e apliquei as ataduras com o máximo cuidado, sugerindo
a Settle que seria melhor guardar segredo sobre a origem exata dos ferimentos,
principalmente com Miss Patterson. Redigi um telegrama, mandando chamar
uma enfermeira do hospital, para ser remetido assim que abrisse a agência de
telégrafo local.
A luz do dia já vinha entrando pela janela. Olhei para o gramado lá
embaixo.
— Vá se vestir que temos que sair — disse abruptamente a Settle. —
Lady Carmichael já se encontra fora de perigo.
Ele se aprontou logo e fomos juntos ao jardim.
— Que vai fazer?
— Desenterrar o cadáver do gato — respondi, lacônico. — Preciso me
certificar...
Encontrei uma pá num galpão de ferramentas e começamos a escavar
debaixo do grande pé de faia comum. Por fim, nossos esforços foram
recompensados. Não era um trabalho agradável. Já fazia uma semana que o
animal tinha morrido. Mas vi o que queria ver.
— Este é o gato — disse. — O mesmo que vi no primeiro dia que cheguei
aqui.
Settle cheirou. Ainda dava para sentir um aroma penetrante de
amêndoas.
— Ácido prússico — constatou.
Confirmei com a cabeça.
— Em que você está pensando? — me perguntou, curioso.
— Na mesma coisa que você!
Minha suposição não constituía novidade para ele — percebi logo que
também já lhe tinha passado pela idéia.
— É impossível — murmurou. — Impossível! Isso contradiz toda a
ciência... a ordem natural das coisas... — Calou-se, estremecendo. — Aquele
rato ontem à noite — disse. — Mas... ah, não pode ser!
— Lady Carmichael é uma mulher estranhíssima. Possui poderes
ocultos... hipnóticos. Seus antepassados vieram do Oriente. Como saber o uso
que terá feito desses poderes com uma pessoa de índole vulnerável e afetuosa
como Andrew Carmichael? E não esqueça, Settle, que se ele ficar sendo um
irremediável débil mental, dependente dela, todos os seus bens passam
praticamente às mãos de Lady Carmichael e do filho... que, segundo você me
disse, ela adora. E o Andrew ia casar!
— Mas, que vamos fazer, Carstairs?
— Nada — respondi. — A não ser nos interpor entre Lady Carmichael e
a vingança.
Lady Carmichael melhorou aos poucos. Os ferimentos cicatrizaram tão
bem quanto se poderia esperar — mas provavelmente ficaria com as marcas
daquela terrível agressão para o resto da vida.
Nunca me senti mais desarmado. A força que nos havia derrotado
continuava à solta, incólume, e embora de momento inativa, sabíamos que não
podia estar fazendo outra coisa senão aguardando uma boa oportunidade.
Decidi tomar uma providência. Assim que Lady Carmichael se sentisse
suficientemente bem para ser removida, teria que ser levada para longe de
Wolden. Talvez houvesse uma chance de que aquela terrível manifestação não
pudesse segui-la. De modo que o tempo foi passando.
Marquei a data de 18 de setembro para a remoção de Lady Carmichael.
Na manhã do dia 14 surgiu uma crise imprevista.
Eu estava na biblioteca comentando com Settle os detalhes do caso
quando uma criada entrou, às pressas, agitada.
— Ah, doutor! — exclamou. — Venha logo! O Mr. Andrew... ele caiu no
lago. Tropeçou dentro do barco, que começou a balançar, perdeu o equilíbrio e
caiu! Eu vi tudo lá da janela.
Não quis saber de mais nada. Saí correndo da sala, seguido por Settle.
Phyllis estava perto da porta e tinha escutado a história da criada. Correu junto
conosco.
— Não precisam ter medo — gritou. — O Andrew nada muito bem.
Mas eu estava com maus pressentimentos e me apressei ainda mais. A
superfície do lago parecia um espelho. O barco vazio flutuava, indolente — mas
nem sinal de Andrew.
Settle tirou o paletó e as botas.
— Vou mergulhar — disse. — Você pegue a vara do outro barco e
comece a sondar. Não é muito fundo.
O tempo deu impressão de passar tremendamente lento enquanto
procurávamos em vão. Por fim, quando já estávamos perdendo as esperanças,
encontramos o corpo aparentemente sem vida, de Andrew Carmichael e o
levamos para a margem.
Jamais poderei esquecer a expressão angustiada do rosto de Phyllis.
— Ele não... não... — Seus lábios se recusaram a articular a terrível
palavra.
— Não, não, minha filha — exclamei. — Não tenha medo. Nós já vamos
fazê-lo recuperar os sentidos.
Mas no íntimo tinha poucas esperanças. Ele tinha ficado meia hora
debaixo d’água. Mandei Settle buscar cobertas quentes e outras coisas
necessárias na casa, e comecei a aplicar a respiração artificial.
Trabalhamos energicamente por mais de uma hora, mas ele não dava
sinais de vida. Pedi para Settle ocupar meu lugar e me aproximei de Phyllis.
— Acho que não vai adiantar — disse-lhe delicadamente. — Não
podemos fazer nada pelo Andrew.
Ela ficou um instante totalmente imóvel e aí, de repente, se jogou de
joelhos para o corpo inanimado.
— Andrew! — bradou, desesperada. — Andrew! Volte pra mim!
Andrew... volte... volte!
A voz ecoou no silêncio. Subitamente toquei no braço de Settle.
— Olhe! — disse eu.
Um leve indício de cor tinha surgido no rosto do afogado. Auscultei-lhe
o coração.
— Continue com a respiração — exclamei. — Ele está voltando a si!
Agora os segundos pareciam voar. Num período de tempo
maravilhosamente curto, os olhos dele se abriram.
Foi então que, bruscamente, percebi a diferença. Aqueles ali eram olhos
inteligentes, humanos...
Pousaram em Phyllis.
— Oi, Phil — murmurou, quase sem forças. — É você? Pensei que só
fosse chegar amanhã.
Ela ainda não se animava a falar, mas sorriu-lhe. Ele olhou em torno,
cada vez mais espantado.
— Mas, escute aqui, onde é que eu estou? E... como me sinto mal! Que
me aconteceu? Olá, Dr. Settle!
— Você quase se afogou... foi isso que lhe aconteceu — explicou Settle,
carrancudo.
Sir Andrew fez uma careta.
— Sempre ouvi dizer que a sensação depois era medonha! Mas como
vim parar aqui? Algum ataque de sonambulismo?
Settle sacudiu a cabeça.
— Temos que levá-lo para casa — disse eu, dando um passo à frente.
Ele me olhou fixamente e Phyllis me apresentou.
— O Dr. Carstairs, que está hospedado aqui.
Nós o levantamos e nos dirigimos à casa. De repente ergueu a cabeça,
como se lhe tivesse ocorrido uma idéia.
— Escute aqui, doutor, isto não vai me atrapalhar pro dia doze, vai?
— Dia doze? — retruquei, hesitante, — você quer dizer doze de agosto?
— É... sexta-feira que vem.
— Hoje é quatorze de setembro — disse Settle bruscamente.
O espanto dele era flagrante.
— Mas... mas eu pensava que fosse oito de agosto?! Então devo ter
andado doente?
— Sim — atalhou logo Phyllis, com aquela voz suave, — você esteve
muito doente.
Ele franziu a testa.
— Não posso entender. Ontem à noite, quando fui dormir, me sentia
perfeitamente bem... só que não foi ontem, lógico. Mas tive um sonho. Eu me
lembro que sonhei... — A testa se franziu ainda mais, enquanto ele puxava pela
memória. — Uma coisa... o que era mesmo?... uma coisa horrível... que alguém
tinha feito pra mim... e fiquei furioso... desesperado... E então sonhei que era
um gato... é, um gato! Engraçado, não é? Mas o sonho não foi nada engraçado.
Foi mais... medonho! Só que não consigo me lembrar direito. Mal começo a
pensar, tudo se vai.
Pus a mão no seu ombro.
— Não procure pensar, Sir Andrew — aconselhei gravemente. —
Contente-se em... esquecer.
Olhou-me intrigado e concordou com a cabeça. Ouvi Phyllis soltar um
suspiro de alívio. Tínhamos chegado à casa.
— Por falar nisso — perguntou Sir Andrew de repente, — onde está
minha mãe?
— Ela tem andado... doente — respondeu Phyllis, depois de uma
pequena pausa.
— Ah! Coitada! — A voz revelava autêntica preocupação. — Onde está
ela? Lá no quarto?
— É — disse eu, — mas é melhor não ir pertur...
As palavras me morreram na boca. A porta da sala de visitas se abriu e
Lady Carmichael, envolta num roupão, surgiu no vestíbulo.
Fixou os olhos em Andrew e, se algum dia já vi um olhar de terror
absoluto, carregado de culpa, foi o dela. Seu rosto nem parecia humano de tão
apavorado que estava. Pôs a mão na garganta.
Andrew se adiantou para ela, com expansividade infantil.
— Olá, mãe! Então, também andou doente? Puxa vida, que pena que me
dá.
Ela recuou, arregalando os olhos. Aí, de repente, com o grito lancinante
de uma alma penada, caiu de costas pela porta aberta.
Corri e me debrucei sobre ela, e depois fiz sinal para Settle se aproximar.
— Não diga nada — pedi. — Leve-o discretamente lá para cima e volte
aqui. Lady Carmichael está morta.
Ele desceu em questão de minutos.
— Que foi? — perguntou. — De que ela morreu?
— De susto — respondi, implacável. — Do susto de ver Andrew
Carmichael, o verdadeiro Andrew Carmichael, novamente vivo! Ou talvez você,
como eu, prefira interpretar como um castigo divino!
— Quer dizer... — Hesitou.
Olhei-o bem nos olhos para que compreendesse.
— Uma vida em troca de outra — expliquei, de modo significativo.
— Mas...
— Sim, eu sei que um acidente estranho e imprevisto permitiu que o
espírito de Andrew Carmichael voltasse ao seu corpo. O que não impede que
Andrew Carmichael tenha sido assassinado.
Ele me olhou, meio a medo.
— Com ácido prússico? — perguntou em voz baixa.
— É — respondi, — com ácido prússico.
Settle e eu nunca divulgamos nossa opinião sobre o caso. Duvido muito
que alguém fosse acreditar. Segundo o ponto de vista ortodoxo, Andrew
Carmichael teve simplesmente um ataque de amnésia, Lady Carmichael feriu a
própria garganta num acesso de loucura passageira e a aparição do Gato Cinzento
foi mera imaginação.
Mas existem dois fatos a meu ver incontestáveis. Um é a cadeira rasgada
no corredor. O outro é ainda mais significativo. Encontrou-se um catálogo da
biblioteca que, depois de busca exaustiva, provou que o volume desaparecido
era uma obra antiga e curiosa sobre as possibilidades da metamorfose de seres
humanos em animais!
Mais uma coisa. Folgo em dizer que Andrew não sabe de nada. Phyllis
guardou o segredo daquelas semanas no fundo do seu coração e tenho certeza
de que jamais irá revelá-lo ao marido que tanto ama e que voltou à vida
atendendo ao apelo da voz dela.