sábado, 26 de abril de 2008

O Gorro do Pintor


Por Lygia Fagundes Telles

Extraído do livro: A Disciplina do Amor



A cidade ficou na maior excitação com a chegada de Hortência Serena a declamadora. Fui correndo ver seu retrato de corpo inteiro, pregado numa cartolina na porta do clube: fiquei extasiada. Nunca tinha visto uma mulher assim tão grande, tão suntuosa no seu longo vestido preto e diadema, revirados os olhos para o céu, os braços pendidos na frente do corpo com as mãos fortemente entrelaçadas no gesto da Senhora das Dores na procissão da Paixão. O anúncio dizia que fora aplaudidíssima nos teatros de São Paulo, Rio e Lisboa, mas tia Ernestina franziu a boca desconfiada: se veio dar com os costados aqui é porque não presta...Reação enérgica da minha mãe, imagina, uma artista internacional!

Foi a primeira vez que ouvi a palavra internacional e que ficou para sempre ligada àquela noite em que Hortência Serena começou a recitar e de repente abriu os braços imensos e o vestido preto ( o mesmo do retrato) se abriu em duas enormes asas presos os panejamentos em argolas enfiadas nos dedinhos. Dedinhos, sim, as mãos gorduchas eram minúsculas como minúsculos eram os pés metidos em sapatinhos de cetim com fivelas de pérolas. No começos dos recitativos ( estávamos na primeira fila) sua figura me empolgou te tal forma que eu só olhava, mal ouvia o poema no qual ela imitava a voz do vento, soprando e rodopiando numa ventania tão forte que eu chegava a me encolher na cadeira, e se tivesse enlouquecido? Mas no número seguinte, já acostumada com as asas, só prestei atenção na história pungente do pintor que tinha um cachorro muito amado e amadíssimo gorro de veludo, presente da noiva que teria morrido, não estou muito certa do destino da moça. O gorro e o cão, eis os únicos bens do artista de vida duríssima, ainda não estava na moda investir em quadros no alto mercado dos capitais. Mas acontece que o pintor enriqueceu e com o poder e a glória vieram os vícios correlatos: deu de beber, ficou vaidoso, mesquinho. O coração, que era só brandura, endureceu tanto que até o cachorro passou a ser maltratado em meio das libações e orgias. Palavras que também aprendi nesse tempo. Numa noite de maior bebedeira, quando o mísero cachorro já velho e quase cego se aproximou abanando o rabo, sorrindo, o pintor teve a idéia: livrar-se do antigo amigo que o irritava com sua simples presença. Tomou-o pela coleira, vamos passear, querido? E atirou-o no rio. Mas no instante exato em que o perverso se inclinou para as águas, o gorro de veludo ( única lembrança da inocente juventude) é arrancado pelo vento e cai no rio juntamente com o cão. O pintor se enfurece: afinal, só por causa daquele mísero bicho ele perde sua preciosa relíquia! Volta para casa, deprimido, tenta dormir, não consegue, põe-se andar pelo casarão quando de repente ouve um estranho ruído lá fora, alguém como que batendo fracamente, chamando: quem seria àquelas horas?

A lágrimas que já corriam abundantes pela minha cara deram uma parada brusca no suspense que Hortência Serena fez render, estáticas mãos e asas abertas no ar_ quem?!...Silêncio. Um silêncio tão profundo que se ouviu o colchete de pressão do corpete da declamadora se abrir no susto. Abri a boca. O pintor abre a porta: na sua frente está o cachorro pingando água, tremendo, trazendo na boca o gorro de veludo. Aproxima-se ganindo muito doce ( nesse momento, minha mãe começou a me arrastar da sala), deposita-lhe aos pés o gorro amado e tomba redondamente morto. Na rua, apressadamente minha mãe me abraçou, me consolou, eu não podia chorar alto assim, não via então? Estava atrapalhando. Repetiu que tudo aquilo era bobagem, mentira e voltamos aos nosso lugares. Hortência Serena agradecia as últimas palmas com a soberba de uma rainha. Teria mesmo me fuzilado com um olhar azul de cólera ou foi impressão minha? Só sei que não a encarei mais até o fim da recitação.

No dia seguinte, quando minha mãe me mandou comprar os ingressos, li a novidade escrita com tinta ainda úmida na cartolina: proibida a entrada de crianças. Meu irmão, que não fora na véspera porque estava de castigo, deu um pontapé no cartaz, essa vacona! Mas eu fiquei quieta