terça-feira, 4 de março de 2008

Certezas e o erro de Galileu


Diferentemente da religião, a ciência não se baseia em dogmas, e o cientista deve ter a humildade de abandonar sua idéia caso se comprove que ela está equivocada

Marcelo Gleiser – REVISTA GALILEU



"Até a gravidade de Newton foi substituída pela Teoria da relatividade de einstein, que eventualmente será substituída por outra teoria"

O Universo está contido no nosso cérebro. “Como assim? Pensei que fosse justamente o contrário”, protestaria o leitor, indignado. “Não é o Universo que, por definição, contém tudo o que existe?” Pois é. Essa é a versão mais óbvia. Afinal, o Universo estava aqui antes de você ou eu existirmos e continuará depois que partirmos. Nossa existência é uma parcela de tempo microscópica na imensidão da existência cósmica. No entanto, o que sabemos sobre a realidade está contido em nossos cérebros. Toda a ciência, a filosofia, a música, a poesia e a literatura, tudo o que a humanidade criou até agora veio dos nossos cérebros. E essas criações mudam com o tempo, à medida que o conhecimento avança, e as condições sociais e culturais também. Conseqüentemente, a concepção do Universo de hoje, início do século 21, é muito diferente da de alguém do século 16 como, por exemplo, Pedro Álvares Cabral. Para ele, o Universo era fechado, com a Terra estática no centro e tudo girando à sua volta. O Universo está contido no nosso cérebro.

Se isso é verdade, por que às vezes se afirma que a ciência é a busca da verdade? Será que existem verdades absolutas? Ou será que tudo o que podemos afirmar está necessariamente limitado pela nossa ótica humana, pela nossa perspectiva limitada da realidade, pelo Universo que está contido em nossos cérebros?

Aqui, devemos diferenciar entre conjecturas e certezas. A matemática pura lida com verdades absolutas, resultados que independem da perspectiva humana. Por exemplo, quando um matemático afirma que 2+2=4 (no sistema decimal) ou que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180 graus (numa geometria plana), não existe discussão. Qualquer inteligência extraterrestre poderia reproduzir esses resultados, mesmo que fossem representados de forma diferente. O símbolo equivalente ao número dois pode mudar, mas seu significado (a soma de duas unidades) é universal.

O mesmo ocorre com certos resultados da física. Por exemplo, quando escuto que a interpretação da física depende de fatores culturais e subjetivos, sugiro ao meu interlocutor que pule duma altura de 10 metros (numa piscina, claro). Eu garanto que qualquer que seja seu ponto de vista sobre a ciência, sua queda seguirá a lei que Galileu obteve há 400 anos, em que a distância percorrida num movimento com aceleração constante (o caso da queda livre na Terra) é proporcional ao quadrado do tempo.

Mas veja o que Galileu dizia sobre as marés: que eram devido à combinação de dois movimentos de rotação, o da Terra em torno de si mesma e em torno do Sol. Ele tinha “certeza” disso, embora fosse apenas uma conjectura. Sua certeza, aliás, era tanta que convenceu até o papa para que lhe permitisse incluir esse argumento num livro, como prova do modelo de Copérnico, no qual o Sol, e não a Terra, era o centro do Cosmo. Foi Newton quem mostrou que as marés são conseqüência da atração gravitacional que a Lua e o Sol exercem sobre a Terra (e a Terra sobre a Lua e o Sol, mas estes não têm oceanos).

O erro de Galileu nos ensina muito. Mesmo que tenhamos convicção de que uma idéia ou teoria esteja correta, ela só se torna uma explicação viável quando é comprovada por experimentos ou, no caso de descobertas astronômicas, por observações. Essa lição muitas vezes é esquecida. Uma idéia torna-se tão cativante que fica difícil não afirmar que seja verdadeira, antes mesmo de ela ser comprovada. Essa é a diferença essencial entre ciência e fé. Um cientista pode ter fé numa conjectura ou idéia, mas apenas após a prova ela é aceita pela comunidade científica. Ainda assim, a explicação é aceita até que outra melhor a substitua. Porque a ciência, diferentemente da religião, não se baseia em dogmas.

Até a gravidade de Newton foi substituída pela Teoria da Relatividade de Einstein. E esta será eventualmente substituída por outra teoria. Todo cientista, mesmo convicto de que sua idéia esteja correta, deve ter a humildade de abandoná-la se for demonstrada errada. A ciência ensina a humildade, a coragem de admitir que, às vezes, nossas idéias estão erradas, por mais belas e cativantes que sejam. Galileu seria o primeiro a concordar com isso.

***Marcelo Gleiser, de 48 anos, é professor do Dartmouth College, nos Estados Unidos, e autor de cinco livros sobre ciência e conhecimento