segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Um Conto...

O CÃO DA MORTE
Foi por intermédio de William P. Ryan, correspondente de um jornal
americano, que ouvi falar pela primeira vez no caso. Estava jantando com ele
em Londres na véspera de seu regresso a Nova York e, por acaso, mencionei
que na manhã seguinte pretendia ir a Folbridge.
Ele levantou os olhos e perguntou abruptamente:
— Folbridge, na Cornualha?
Ora, é raríssima a pessoa que sabe que existe Folbridge, na Cornualha.
Todo mundo sempre pensa que se traía de Folbridge em Hampshire. Por isso o
conhecimento de Ryan despertou minha curiosidade.
— É — respondi. — Você já esteve lá?
Ele limitou-se a praguejar. Depois perguntou se por acaso eu não
conhecia uma casa chamada Trearne, que ficava por lá.
Meu interesse aumentou.
— Claro que conheço. Por sinal, é para lá que eu vou. É a casa da minha
irmã.
— Puxa! — exclamou William P. Ryan. — Só faltava mais essa!
Sugeri que parasse de fazer comentários enigmáticos e se explicasse
melhor.
— Bem — disse ele. — Para isso terei que começar por uma experiência
que tive no início da guerra.
Suspirei. A história que estou contando aconteceu em 1921. A última
coisa que podia me interessar era relembrar a guerra, graças a Deus já quase
esquecida... Além do mais, eu sabia que William P. Ryan tinha o costume de ser
incrivelmente prolixo quando se punha a descrever suas experiências de
combate.
Mas agora não havia mais jeito de impedir.
— No princípio da guerra, como acho que você sabe, eu me encontrava
na Bélgica a serviço do jornal... andando de um lado para o outro. Pois existia
um lugarejo... vamos chamá-lo de X. A aldeia mais insignificante que já se viu,
mas onde há um convento bastante grande. Freiras de branco, como é mesmo
que elas se chamam?... Sei lá o nome da ordem. Enfim, não vem ao caso. Pois
essa cidadezinha ficava bem no caminho da avançada alemã. Os boches
chegaram...
Agitei-me incômodo no assento. William P. Ryan levantou a mão, para
me tranqüilizar.
— Não se assuste — disse. — Não é uma história de atrocidades
germânicas. Podia ter sido, talvez, mas não foi. Para ser franco, aconteceu
exatamente o contrário. Os boches atacaram o tal convento... e quando
entraram, a coisa toda voou pelos ares.
— Puxa! — exclamei, espantado.
— Negócio estranho, não é? Claro que a primeira coisa que eu diria é que
os boches estavam festejando a vitória e começaram a brincar com seus próprios
explosivos. Mas parece que não havia nenhuma coisa desse tipo entre os
armamentos que eles carregavam. Não era uma unidade encarregada do
transporte de dinamite. Pois muito bem, eu então pergunto a você o que é que
um bando de religiosas entende de explosivos? Que freiras danadas, hem?
— De fato, é estranho — concordei.
— Fiquei interessado em ouvir a opinião dos camponeses sobre o
assunto. Para eles a explicação não podia ser mais simples. Tratava-se de um
milagre moderno, sensacional, cem por cento eficaz. Segundo eles, uma das
freiras havia criado uma espécie de fama... uma vocação de santa... entrava em
transe e tinha visões. E me disseram que foi ela a autora da proeza. Pediu que
um raio fulminasse o invasor impiedoso... e não há que negar que fulminou
mesmo... e tudo mais que se encontrava por perto. Milagre bem eficaz, esse!
“Nunca consegui apurar a verdade direito... não deu tempo. Mas
naquela época surgiam milagres por tudo quanto é canto... anjos em Mons, e
assim por diante. Escrevi o artigo, adicionei uma boa dose de pieguice, explorei
bem o lado religioso, e mandei pro jornal. Causou sucesso nos Estados Unidos.
Era o tipo da coisa que gostavam de ler naquele tempo.
“Mas (não sei se você vai compreender isto) ao escrever o artigo, fiquei
meio interessado. Achei que gostaria de saber o que tinha realmente acontecido.
No próprio local não havia nada para se ver. Ainda restavam duas paredes de
pé, e numa delas existia uma grande marca de pólvora preta com a forma exata
de um enorme cão de caça. Os camponeses das imediações andavam mortos de
medo da tal marca. Botaram-lhe o nome de Cão da Morte e não passavam por lá
depois que anoitecia.
“A superstição é sempre uma coisa interessante. Resolvi procurar a freira
autora da proeza. Parecia que continuava viva. Mas tinha vindo para a
Inglaterra, junto com um grupo de outros refugiados. Me dei ao trabalho de
localizá-la. Descobri que havia ido para Trearne, em Folbridge, na Cornualha.”
Confirmei com a cabeça.
— Minha irmã acolheu uma porção de refugiados belgas no começo da
guerra. Uns vinte, mais ou menos.
—Pois me prometi que, quando tivesse tempo, iria procurar a tal freira.
Queria que ela me contasse a sua própria versão da tragédia. Depois, andando
sempre às voltas com uma coisa e outra, não pensei mais no assunto. A
Cornualha, de qualquer forma, fica meio fora de mão. Para falar a verdade,
tinha-me esquecido por completo dessa história, até que você, ao mencionar
Folbridge há pouco, trouxe tudo de volta à minha memória.
— Vou perguntar à minha irmã — disse eu. — Ela deve ter ouvido falar
no caso. Só que os belgas, naturalmente, já foram repatriados há muito tempo.
— Lógico. Mesmo assim, se sua irmã souber de alguma coisa, eu gostaria
muito que você me comunicasse.
— Pode ficar descansado — prometi.
E a coisa ficou nesse pé.
II
Foi no dia seguinte à minha chegada a Trearne que me lembrei da
história. Minha irmã e eu estávamos tomando chá no terraço.
— Kitty — perguntei, — não havia uma freira entre os belgas que você
acolheu?
— Você não quer dizer a irmã Marie Angelique, não é?
— É possível que sim — respondi, precavido. — Me fale sobre ela.
— Ah, meu caro! É uma criatura simplesmente fantástica. Ainda mora
aqui, você sabia?
— Quê? Aqui em casa?
— Não, não, na aldeia. O Dr. Rose... lembra-se do Dr. Rose?
Sacudi a cabeça.
— Eu me lembro de um velho de seus oitenta e três anos.
— O Dr. Laird? Não, esse já morreu. Faz pouco tempo que o Dr. Rose
veio pra cá. É bem moço e cheio de idéias avançadas. Se tomou de um interesse
enorme pela irmã Marie Angelique. Sabe, ela sofre de alucinações e não sei mais
o quê, e pelo jeito é tremendamente interessante sob o ponto de vista médico.
Coitada, não tinha para onde ir... e realmente, na minha opinião, era bem
amalucada... só que de uma maneira comovente, se è que você me entende...
pois bem, como eu ia dizendo, ela não tinha para onde ir e o Dr. Rose, muito
gentilmente, arrumou para que ela ficasse na aldeia. Creio que ele está
escrevendo uma monografia ou seja lá o que for que os médicos escrevem, a
respeito dela.
Fez uma pausa e depois perguntou:
— Mas o que é que você sabe dela?
— Ouvi uma história bastante curiosa.
E contei exatamente o que Ryan tinha me dito. Kitty ficou
Interessadíssima.
— Ela parece mesmo o tipo da pessoa que seria capaz de mandar você
pelos ares... entende o que eu quero dizer, não é?
— Estou achando — respondi, cada vez mais curioso, — que preciso
mesmo falar com essa moça.
— Pois fale. Eu gostaria de saber sua opinião sobre ela. Mas primeiro
procure o Dr. Rose. Por que não vai até a aldeia depois do chá?
Aceitei a sugestão.
Encontrei o Dr. Rose em casa e me apresentei. Parecia ser um rapaz
simpático, mas havia qualquer coisa na sua personalidade que não me agradou
muito. Era prepotente demais para deixar a gente inteiramente à vontade.
Ficou bem atento quando mencionei a irmã Marie Angelique. Era
evidente que estava profundamente interessado. Contei-lhe a história que tinha
ouvido de Ryan.
— Ah! — exclamou, pensativo. — Isso explica uma porção de coisas.
Levantou rápido os olhos para mim e continuou.
— O caso, de fato, é incrivelmente interessante. Quando ela chegou aqui,
era evidente que tinha sofrido algum choque muito grande. Encontrava-se
também num estado de grave perturbação mental. Era dada a alucinações de
uma natureza simplesmente desconcertante. A personalidade dela é
absolutamente fora do comum. Talvez o senhor queira vir junto comigo para
lhe fazermos uma visita. Vale a pena conversar com ela.
Concordei prontamente.
Dirigimo-nos a um pequeno chalé nos arredores da aldeia. Folbridge é
um lugar muito pitoresco. Fica na foz do Rio Fol, sobretudo na margem leste; a
margem oeste é escarpada demais para ser povoada, o que não impede que
existam algumas casas construídas temerariamente lá por aqueles penhascos. A
do médico, por exemplo, estava encarapitada bem na extremidade do penhasco
do lado oeste. Dali se avistavam as grandes ondas batendo contra os rochedos
negros.
O pequeno chalé para onde agora nos dirigíamos ficava afastado da
costa, sem vista para o mar.
— A enfermeira local mora aqui — explicou o Dr. Rose. — Eu
providenciei para que a irmã Marie Angelique se hospedasse com ela. É melhor
que permaneça sob cuidados especiais.
— Ela tem comportamento normal? — perguntei, curioso.
— Daqui a pouco o senhor verá com seus próprios olhos — respondeume,
sorrindo.
A enfermeira local, uma mulherzinha baixota e simpática, estava saindo
de bicicleta quando chegamos.
— Boa tarde, enfermeira. Como vai a paciente? — gritou o médico.
— Como sempre, doutor. Sentada lá dentro com as mãos no colo e o
espírito ausente. Muitas vezes não responde quando lhe falo, apesar de que
deve-se levar em conta que ainda não entende bem o inglês.
Rose concordou com a cabeça e, enquanto a enfermeira saía pedalando
pela estrada afora, foi até a porta do chalé, bateu com força e entrou.
A irmã Marie Angelique estava reclinada numa preguiçosa perto da
janela. Virou a cabeça para o nosso lado.
Tinha um rosto estranho — pálido, transparente, com olhos imensos.
Pareciam conter uma infinidade de tragédias.
— Boa tarde, irmã — disse o médico, em francês.
— Boa tarde, M. le docteur.
— Permita-me apresentar-lhe um amigo, Mr. Anstruther.
Fiz uma mesura. Ela inclinou a cabeça com um leve sorriso.
— Como está hoje? — perguntou o médico, sentando-se a seu lado.
— Como sempre. — Houve uma pausa. Depois continuou. — Nada me
parece real. São dias... meses... ou anos que passam? Eu mal sei. Só meus sonhos
me parecem reais.
— Ainda sonha muito, então?
— Sempre... sempre... e, o senhor compreende?... os sonhos parecem
mais reais do que a vida.
— Sonha com seu país... com a Bélgica?
Ela sacudiu a cabeça.
— Não. Sonho com um país que nunca existiu... nunca. Mas isso o senhor
está cansado de saber, M. le docteur. Já lhe contei várias vezes. — Parou e depois
disse bruscamente: — Mas talvez este senhor também seja médico... um
especialista de doenças do cérebro?
— Não, não.
Rose quis tranqüilizá-la, mas enquanto sorria, notei como seus dentes
caninos eram incrivelmente pontudos e me ocorreu que havia qualquer coisa de
lobo nele. Prosseguiu:
— Achei que talvez tivesse interesse em conversar com Mr. Anstruther.
Ele conhece um pouco a Bélgica. Ultimamente recebeu notícias do seu
convento.
Os olhos dela se viraram para mim. Senti que avermelhei de leve.
— Não é nada, realmente — me apressei a explicar. — Mas outra noite
estava jantando com um amigo que me descreveu as paredes desmoronadas do
convento.
— Quer dizer então que desmoronaram!
Era uma exclamação sufocada, dirigida mais a ela própria do que a nós
mesmos. Depois, olhando-me mais uma vez, perguntou hesitante:
— Diga-me, monsieur, o seu amigo não descreveu como... de que
maneira... desmoronaram?
— Foi devido a uma explosão — respondi, e acrescentei: — Os
camponeses têm medo de passar lá de noite.
— Por quê?
— Por causa de uma marca preta nos escombros de uma parede. São
muito supersticiosos.
Ela se curvou para a frente.
— Diga-me, monsieur... depressa... depressa... diga-me! Como é essa
marca?
— Tem a forma de um enorme cão de caça — respondi. — Os
camponeses lhe botaram o nome de Cão da Morte.
— Ah! — exclamou, num grito. — Então é verdade... é verdade. Tudo o
que eu me lembro é verdade. Não foi nenhum pesadelo. Isso aconteceu!
Aconteceu!
— O que aconteceu, irmã? — perguntou o médico em voz baixa.
Ela se virou, ansiosa, para ele.
— Eu me lembrava. Lá, nos degraus, eu me lembrava. Me lembrava de
tudo. Usei o poder que tínhamos antigamente. Fiquei parada nos degraus do
altar e pedi que não se aproximassem. Mandei que fossem embora, em paz. Não
quiseram ouvir, continuaram vindo apesar das minhas advertências. E aí... —
Curvou-se para a frente e fez um gesto estranho. — E aí eu soltei o Cão da
Morte em cima deles. ..
Recostou-se de novo na cadeira, estremecendo da cabeça aos pés, os
olhos fechados.
O médico se levantou, foi buscar um copo no armário, encheu de água
até o meio, pingou duas gotas de um frasquinho que tirou do bolso, e depois
levou para ela.
— Beba isto aqui — pediu, autoritário.
Ela obedeceu — maquinalmente, por assim dizer. Tinha o olhar distante,
como se estivesse contemplando uma visão que só ela podia enxergar.
— Mas então tudo é verdade — murmurou. — Tudo. A Cidade dos
Círculos, as pessoas de cristal... tudo. É tudo verdade.
— Parece que sim — concordou Rose.
Falava em voz baixa, apaziguadora, com o nítido propósito de estimular
e não perturbar a associação de idéias da religiosa.
— Fale-me da cidade — pediu. — Da Cidade dos Círculos, não foi isso
que você disse?
— Sim... havia três círculos — respondeu maquinalmente, distraída. — O
primeiro se destinava aos eleitos, o segundo às sacerdotisas e o último aos
sacerdotes.
— E no centro?
Ela tomou fôlego com veemência e a voz adquiriu um tom de
indescritível pavor.
— A Casa de Cristal...
Ao pronunciar essas palavras, levantou a mão direita e traçou com o
dedo um contorno qualquer sobre a testa.
Seu corpo pareceu mais rígido e, sempre de olhos fechados, oscilou um
pouco — depois, de repente, endireitou-se de um salto, como se tivesse
acordado bruscamente.
— Que foi? — perguntou, confusa. — Que que eu estava falando?
— Não foi nada — respondeu Rose. — Você está cansada. Quer
descansar. Nós já vamos embora.
Parecia meio estonteada quando saímos.
— Então — disse Rose, já do lado de fora. — Qual foi a sua impressão?
Lançou-me um olhar penetrante enquanto caminhávamos.
— Acho que ela está completamente desequilibrada — respondi,
devagar.
— Foi isso que lhe pareceu, é?
— Não... para dizer a verdade, ela quase que me convenceu... de uma
maneira até estranha. Ouvindo o que ela falava, tive a impressão de que, de
fato, havia feito tudo aquilo que descrevia... operando uma espécie de
gigantesco milagre. O jeito como ela acredita nisso me parece bastante
autêntico. É por isso que...
— É por isso que o senhor diz que ela está desequilibrada. Tem razão.
Mas agora encare o caso sob outro aspecto. Suponhamos que ela tenha,
realmente, feito aquele milagre... suponhamos que ela, pessoalmente, tenha
destruído um prédio e centenas de seres humanos.
— Pelo simples poder da vontade? — retruquei, sorrindo.
— Não diria bem isso. O senhor sabe que uma pessoa pode destruir uma
multidão apertando um botão que controlasse um sistema de minas.
— Sim, mas isso é uma coisa mecânica.
— De fato, é uma coisa mecânica, mas é a utilização e o controle de forças
naturais. As trovoadas e a usina elétrica são, fundamentalmente, a mesma coisa.
— Sim, mas para controlar a trovoada nós temos que recorrer a processos
mecânicos.
Rose sorriu.
— Vou escapar pela tangente. Existe uma substância chamada gaultéria,
que aparece na natureza em forma de vegetal, mas que também pode ser obtida
sintética e quimicamente no laboratório.
— E daí?
— O que eu quero dizer é que muitas vezes há duas maneiras de chegar
ao mesmo resultado. A nossa é, reconhecidamente, a sintética. Mas talvez haja
outra. Os incríveis resultados conseguidos pelos faquires hindus, por exemplo,
não se explicam satisfatoriamente com qualquer resposta fácil. As coisas que
chamamos de sobrenaturais não têm, necessariamente, nada de sobrenatural.
Uma lanterna elétrica seria sobrenatural para um selvagem. O sobrenatural é
apenas o natural daquilo cujas leis ainda não entendemos.
— Que quer dizer? — perguntei, fascinado.
— Que não posso excluir por completo a possibilidade de que o ser
humano talvez seja capaz de armazenar uma grande força destruidora e usá-la
para atingir seus objetivos. Os meios pelos quais ele conseguiria isso poderiam
nos parecer sobrenaturais... mas na realidade não são.
Arregalei os olhos.
Ele riu.
— Trata-se apenas de uma especulação — disse, despreocupado... — Me
diga uma coisa, o senhor não reparou no gesto que ela fez quando mencionou a
Casa de Cristal?
— Ela passou a mão pela testa.
— Exatamente. E traçou um círculo com o dedo. Tal como um católico ao
fazer o sinal da cruz. Agora vou lhe contar uma coisa bastante curiosa, Mr.
Anstruther. A palavra cristal já foi usada tantas vezes nas divagações da minha
paciente, que decidi fazer uma experiência. Peguei um cristal emprestado e um
dia mostrei-o inesperadamente para testar a reação dela.
— E daí?
— Bem, o resultado foi muito interessante e sugestivo. Ela endureceu
todo o corpo e ficou olhando para o cristal como se não pudesse acreditar no
que estava vendo. Depois caiu de joelhos diante dele, murmurou algumas
palavras... e desmaiou.
— Que palavras que ela disse?
— Muito estranhas. “O Cristal! Então a fé ainda vive!”
— Que coisa incrível!
— Dá para a gente pensar, não é? Agora vem a parte curiosa. Quando ela
voltou a si do desmaio, tinha-se esquecido de tudo. Mostrei-lhe o cristal e
perguntei se sabia o que era. Me respondeu que imaginava que fosse uma
dessas bolas de cristal usadas pelos adivinhos. Perguntei-lhe se nunca tinha
visto uma. Ela respondeu: “Nunca, M. le docteur”. Mas eu notei que estava com
o olhar perplexo. “O que é que a está preocupando, irmã?”, perguntei. Ela
respondeu: “É que acho tão estranho. Nunca tinha visto antes um cristal e no
entanto... me parece que já conheço tão bem. Tem uma coisa... se ao menos eu
pudesse me lembrar....” O esforço que fazia para recordar era evidentemente
tão penoso que eu proibi que pensasse mais naquilo. Isso foi há duas semanas.
Venho contemporizando de propósito. Amanhã vou fazer uma nova
experiência.
— Com o cristal?
— É. Quero que ela olhe bem para ele. Acho que o resultado vai ser
interessante.
— Que espera descobrir? — perguntei, curioso.
A pergunta era ociosa, mas o resultado foi inesperado. Rose se
empertigou todo, avermelhou, e quando respondeu seu comportamento havia
mudado sem que se desse conta. Estava mais formal, mais profissional.
— A explicação para certos desequilíbrios mentais que não se
compreendem direito. A irmã Marie Angelique é um objeto de estudo muito
interessante.
Quer dizer, então, que o interesse de Rose era unicamente profissional?
— pensei.
— Não se importa que eu venha junto? — perguntei.
Talvez fosse imaginação minha, mas me pareceu que ele hesitou antes de
responder. Tive a súbita intuição de que não queria que eu fosse.
— Claro que não. Não faço a menor objeção.
E acrescentou:
— O senhor não pretende se demorar muito por aqui, não é?
— Só vou ficar até depois de amanhã.
Deu-me a impressão de ter ficado contente com a resposta. Desanuviou a
testa e começou a falar sobre certas experiências efetuadas recentemente em
cobaias.
III
Na tarde do dia seguinte me encontrei com o médico na hora marcada e
fomos juntos à casa da irmã Marie Angelique. Ele estava todo gentil, talvez para
desfazer a impressão causada na véspera.
— Não leve muito a sério o que eu disse — comentou, rindo. — Não vá
pensar que me dedico a ciências ocultas. O diabo é que eu tenho uma fraqueza
infernal para tirar as coisas a limpo.
— É mesmo?
— É sim, e quanto mais fantásticas, mais eu gosto.
Riu como a gente ri de uma fraqueza engraçada.
Quando chegamos ao chalé, a enfermeira local queria consultar Rose
sobre não sei o quê, de modo que fiquei a sós com a irmã Marie Angelique.
Vi que ela me analisava minuciosamente. Não demorou muito, disse:
— A nossa querida enfermeira me falou que o senhor é irmão daquela
senhora tão educada que mora lá no casarão para onde me levaram quando vim
da Bélgica.
— Sou, sim — confirmei.
— Ela foi muito boa pra mim. É uma ótima pessoa. Calou-se, como que
remoendo uma idéia. Por fim perguntou:
— M. le docteur também é uma ótima pessoa? Fiquei meio atrapalhado.
— É sim. Quero dizer... acho que é.
— Ah! — Fez uma pausa e depois acrescentou: — Não há que negar que
ele tem sido muito bom pra mim.
— Sem dúvida nenhuma.
Ela levantou bruscamente os olhos.
— Monsieur... o senhor... o senhor que agora está conversando aqui
comigo... o senhor acha que eu estou louca?
— Ora, irmã, uma idéia dessas nunca me...
Ela sacudiu lentamente a cabeça — interrompendo meu protesto.
— Será que estou louca? Sei lá... as coisas que eu lembro... as coisas que
esqueço...
Suspirou, e nesse instante Rose entrou na sala.
Cumprimentou-a alegremente e explicou o que desejava que ela fizesse.
— Sabe, há certas pessoas que possuem o dom de ver coisas num cristal.
Desconfio que você também possua esse dom, irmã.
Pareceu inquieta.
— Não, não, eu não posso fazer isso. Tentar adivinhar o futuro... isso é
pecado.
Rose ficou surpreso. Não contava com aquela reação. Mudou logo de
tática.
— Não se deve querer ver o futuro, tem toda a razão. Já o passado... é
diferente.
— O passado?
— Sim... existem muitas coisas estranhas no passado. Que voltam como
relâmpagos... entrevistos um instante... e depois desaparecem de novo. Não
procure enxergar nada no cristal, já que isso não lhe está permitido. Apenas
pegue-o nas mãos... assim. Olhe para ele... olhe bem. É... olhe bem no fundo...
cada vez mais. Já está se lembrando, não é? Está, sim. E também ouve minha
voz, falando com você. Agora responda minhas perguntas. Não está me ouvindo?
A irmã Marie Angelique tinha pegado o cristal como ele pedia,
segurando-o com estranho respeito. Depois, à medida que ia olhando bem para
ele, seu olhar se tornou vago, como se não estivesse vendo mais nada, e deixou
pender a cabeça. Parecia estar dormindo.
O médico tirou-lhe o cristal delicadamente das mãos e colocou-o em cima
da mesa. Levantou-lhe o canto da pálpebra. Depois veio sentar-se ao meu lado.
— Temos que esperar que acorde. Acho que não vai demorar muito.
Tinha razão. Ao cabo de cinco minutos, a irmã Marie Angelique se
mexeu. Abriu languidamente os olhos.
— Onde estou?
— Aqui... em casa. Você dormiu um pouco. Sonhou, não sonhou?
Ela confirmou com a cabeça.
— Sonhei, sim.
— Foi com o Cristal?
— Foi.
— Conte pra nós.
— O senhor vai me achar louca, M. le docteur. Pois imagine, no meu
sonho, o Cristal era um emblema sagrado. Cheguei, inclusive, a conceber um
segundo Cristo, um Mestre do Cristal, que morreu pela sua fé, cujos discípulos
foram caçados... perseguidos... Mas a fé sobreviveu.
— Sobreviveu?
— Sim... durante quinze mil luas cheias... quero dizer, durante quinze
mil anos.
— Quanto tempo dura uma lua cheia?
— O tempo de treze luas comuns. Sim, foi na décima-quinta milésima lua
cheia... eu, naturalmente era uma Sacerdotisa do Quinto Signo na Casa de
Cristal. Foi nos primeiros dias do advento do Sexto Signo...
Franziu as sobrancelhas e uma expressão de medo passou-lhe pelo rosto.
— Cedo demais — murmurou. — Cedo demais. Um engano... Ah, sim!
Agora me lembro! O Sexto Signo!
Meio que saltou em pé, depois recostou-se de novo, passando a mão pelo
rosto e murmurando:
— Mas que estou dizendo? Deliro. Essas coisas nunca aconteceram.
— Vamos, não se preocupe.
Mas ela o olhava, perplexa, angustiada. — M. le docteur, eu não entendo.
Por que é que eu tenho esses sonhos... essas fantasias? Eu tinha apenas
dezesseis anos quando entrei para a vida religiosa. Nunca viajei. No entanto
sonho com cidades, com pessoas e costumes estranhos. Por quê?
Apertou a cabeça entre as mãos.
— Nunca foi hipnotizada, irmã? Nem entrou em estado de transe?
— Nunca fui hipnotizada, M. le docteur. Quanto ao transe, quando eu
rezava na capela, meu espírito muitas vezes se alienava do corpo e eu ficava
uma porção de horas como se estivesse morta. Era, sem dúvida, um estado de
bem-aventurança, um estado de graça... como dizia a Reverenda Madre. Ah, é?
— Prendeu a respiração. — Agora me lembro. Nós também chamávamos isso de
estado de graça.
— Gostaria de fazer uma experiência, irmã — disse Rose numa voz bem
natural. — Talvez disperse essas lembranças penosas. Vou lhe pedir que olhe
mais uma vez para o cristal. Depois lhe direi uma determinada palavra. Você
responderá com outra. Continuaremos assim até que se sinta cansada.
Concentre seus pensamentos no cristal e não nas palavras.
Enquanto eu tornava a desembrulhar o cristal e o entregava à irmã Marie
Angelique, reparei na maneira respeitosa com que ela o pegava. Pousado sobre
o veludo preto, ficou entre as delgadas palmas de suas mãos. Ela o fitava com
aqueles maravilhosos olhos profundos. Houve um curto silêncio e depois o
médico disse: “Cão”.
A irmã Marie Angelique respondeu imediatamente: “Morte”.
IV
Não pretendo descrever todos os pormenores da experiência. O médico
pronunciou muitas palavras sem importância nem sentido. Repetiu outras
várias vezes, pra obtendo a mesma resposta, ora obtendo uma resposta
diferente.
Naquela noite comentamos o resultado da experiência no pequeno chalé
do médico nos penhascos.
Ele pigarreou e puxou seu caderno de notas mais para perto.
— Estes resultados são interessantíssimos... muito curiosos. Em resposta
às palavras “Sexto Signo”, nós Obtivemos uma profusão de outras: Destruição,
Roxo, Cão, Poder, depois novamente Destruição e, por fim, Poder. Mais tarde,
como talvez tenha observado, inverti o método, com os seguintes resultados.
Em resposta a Destruição, obtive Cão; a Roxo, Poder; a Cão, novamente Morte, e a
Poder, Cão. Isso está tudo inter-relacionado, mas numa segunda repetição de
Destruição, eu obtive Mar, que parece totalmente descabido. Para as palavras
“Quinto Signo”, eu obtive Azul, Pensamentos, Pássaro, novamente Azul e, por
fim, a frase bastante sugestiva Abertura do espírito à percepção. A partir do fato de
que “Quarto Signo” evoca a palavra Amarelo, e depois Luz, e que “Primeiro
Signo” é respondido por Sangue, eu deduzo que cada Signo tenha uma cor
própria, e possivelmente um símbolo próprio, sendo que o do Quinto seria um
Pássaro e o do Sexto um Cão. Desconfio, porém, que o Quinto Signo
representasse o que se conhece comumente pelo nome de telepatia — a abertura
do espírito à percepção. O Sexto Signo, sem dúvida, representa o Poder da
Destruição.
— Qual o significado de Mar?
— Isso, confesso que não sei explicar. Eu pronunciei a palavra depois e
obtive a resposta comum de Barco. Para o Sétimo Signo, houve primeiro Vida, e
na segunda vez Amor. Para o Oitavo Signo, obtive a resposta Nenhum. Suponho,
portanto, que Sete era a soma e o número dos signos.
— Mas o Sétimo não foi atingido — exclamei, numa súbita inspiração. —
Pois com o Sexto chegava a Destruição!
— Ah! O senhor acha, é? Mas nós estamos levando essas... divagações
malucas muito a sério. Elas de fato, só possuem interesse sob um ponto de vista
médico.
— Certamente atrairão a atenção dos investigadores de fenômenos
psíquicos.
Os olhos do médico se franziram.
— Meu caro senhor, eu não tenho a menor intenção de divulgá-las ao
público.
— Então o seu interesse... ?
— É unicamente profissional. Está claro que tomarei notas sobre o caso.
— Compreendo.
Mas, pela primeira vez, percebi que não estava compreendendo nada.
Levantei-me.
— Bem, desejo-lhe uma boa noite, doutor. Amanhã parto de volta para a
cidade.
— Ah!
Tive impressão de que havia satisfação, talvez alívio, atrás dessa
exclamação.
— Desejo-lhe boa sorte nas suas investigações — continuei,
despreocupadamente. — Da próxima vez que nos encontrarmos, não solte o
Cão da Morte em cima de mim, hem?!
Enquanto falava, segurava-lhe as mãos e senti o susto que levou. Mas
logo se recompôs. Os lábios se abriram num sorriso, mostrando os longos
dentes pontudos.
— Que poder para um homem que se embriagasse com ele! —
exclamou. — Ter a vida de cada ser humano na palma da mão!
E alargou ainda mais o sorriso.
V
Esse foi o fim da minha ligação direta com o caso.
Mais tarde, o caderno de notas e o diário do médico chegaram às minhas
mãos. Vou reproduzir aqui os seus rápidos apontamentos, embora vocês hão de
compreender que eles só caíram realmente em meu poder algum tempo depois.
5 de agosto. Descobri que a irmã M.A. entende por “Eleitos” aqueles que
reproduziram a raça. Eram, pelo visto, venerados e exaltados acima do
Sacerdócio. Veja-se o contraste com os cristãos primitivos.
7 de agosto. Convenci a irmã M.A. a me deixar hipnotizá-la. Consegui
provocar-lhe o sono e o transe hipnótico, mas não estabeleci nenhuma relação.
9 de agosto. Teriam existido civilizações antigas perto das quais a nossa
fosse insignificante? Por estranho que pareça, tudo indica que sim, e eu sou o
único homem que possui a pista...
12 de agosto. A irmã M.A. não se mostra nada suscetível à sugestão
quando hipnotizada. No entanto, o estado de transe é facílimo de ser
provocado. Não posso entender.
13 de agosto. A irmã M.A. mencionou hoje que em “estado de graça” o
“portão precisa ficar fechado, para que ninguém mais domine o corpo”.
Interessante — mas desconcertante.
18 de agosto. Quer dizer, pois, que o Primeiro Signo não é senão... (faltam
palavras que foram apagadas)... então quantos séculos vai levar para chegar ao
Sexto? Mas se houvesse um atalho para o Poder...
20 de agosto. Providenciei tudo para que M.A. viesse para cá com a
enfermeira. Disse-lhe que é indispensável manter a paciente sob a ação da
morfina. Estarei louco? Ou será que sou o Super-homem, com o Poder da Morte
em minhas mãos?
(Aqui terminam os apontamentos.)
VI
Creio que foi no dia 29 de agosto que recebi a carta. Vinha endereçada a
mim, aos cuidados de minha cunhada, numa letra deitada de estrangeira. Abri
o envelope com certa curiosidade. Dizia o seguinte:
Cher Monsier,
Falei só duas vezes com o senhor, mas sinto que é uma pessoa em quem
posso confiar. Não sei se meus sonhos são verdadeiros ou não, mas
ultimamente se tornaram mais nítidos... E, monsieur, de uma coisa estou
absolutamente certa, o Cão da Morte não é nenhum sonho... Nos dias de que
lhe falo (não sei se foram reais ou não). Aquele que era o Guarda do Cristal
revelou cedo demais o Sexto Signo ao Povo... O mal se apossou de seus
corações. Ganharam o poder de matar à vontade — e injustamente — tomados
de cólera. Embriagaram-se com a volúpia do Poder. Quando percebemos isso,
nós que ainda éramos puros, logo vimos que mais uma vez não completaríamos
o Círculo nem atingiríamos o Signo da Vida Eterna. E aquele que estava
escalado para ser o próximo Guarda do Cristal teve que agir. Para que os velhos
perecessem e os novos, depois de séculos sem fim, pudessem ressurgir, ele
soltou o Cão da Morte em cima do mar (cuidando para não fechar o Círculo) e o
mar se levantou na forma de um Cão e tragou a terra por completo. ..
Já me lembrei disso antes — nos degraus do altar, na Bélgica...
O Dr. Rose pertence à Irmandade. Ele conhece o Primeiro Signo e a
forma do Segundo, embora ninguém, salvo alguns eleitos, esteja a par do seu
significado. Por meu intermédio ele chegaria ao Sexto. Até agora consegui
resistir-lhe — mas me sinto cada vez mais fraca, monsieur, e não convém que um
homem atinja o poder antes da hora. Muitos séculos hão de se passar antes que
o mundo esteja preparado para receber o poder da morte em suas mãos... Eu
lhe suplico, monsieur, o senhor que tanto preza o bem e a verdade, me ajude...
antes que seja tarde demais.
Sua irmã em Cristo,
Marie Angelique.
Deixei o papel cair no chão. A terra sob os meus pés parecia menos firme
que de costume. Depois comecei a me reanimar. A crença da coitada, por mais
autêntica que fosse, tinha quase me contagiado. Mas não havia dúvida. O Dr.
Rose, com seu fanatismo para tirar as coisas a limpo, estava ultrapassando dos
limites de sua condição profissional. Eu ia correr até lá e...
De repente dei com uma carta de Kitty no meio da correspondência. Abri
o envelope. Dizia:
Aconteceu uma coisa horrível. Você se lembra do
chalezinho do Dr. Rose, lá no penhasco? Pois, ontem à
noite, houve um desmoronamento de terra e o doutor e
aquela pobre freira, a irmã Marie Angelique, morreram.
Os destroços na praia são um verdadeiro horror — tudo
amontoado de uma maneira fantástica — de longe parece
um enorme cão...
A carta me caiu das mãos.
Os outros fatos talvez fossem coincidência. Um tal de Mr. Rose, que eu
descobri que era um parente rico do médico, morreu repentinamente, naquela
mesma noite — dizem que fulminado por um raio. Ao que me consta, não
houve nenhum temporal nas imediações, mas duas pessoas declararam ter
ouvido uma trovoada. E no corpo do morto apareceu uma queimadura elétrica
“de uma forma curiosa”. Em seu testamento deixava tudo para o sobrinho, o
Dr. Rose.
Ora, suponhamos que o Dr. Rose conseguisse obter o segredo do Sexto
Signo por intermédio da irmã Marie Angelique. Ele sempre me deu impressão
de ser um sujeito inescrupuloso — que não hesitaria em dar cabo da vida do tio
se tivesse certeza de que ficaria impune. Mas uma frase da carta da irmã Marie
Angelique não me sai da cabeça: “... cuidando para não fechar o Círculo...” O
Dr. Rose não teve esse cuidado — talvez ignorasse as medidas que devia tomar
ou até nem soubesse que precisava fazer isso. E assim a Força que usou se
voltou contra ele, fechando o círculo...
Mas claro, que bobagem! A explicação é perfeitamente natural. Que o
doutor acreditasse nas alucinações da irmã Marie Angelique apenas prova que
o cérebro dele também estava levemente desequilibrado.
No entanto, às vezes eu sonho com um continente submarino onde a
humanidade outrora viveu e atingiu um grau de civilização muito mais
adiantado que o nosso...
Ou será que a memória da irmã Marie Angelique funcionava de trás para
diante — como alguns dizem que é possível — e que a tal Cidade dos Círculos
se encontra no futuro e não no passado?
Bobagem — claro que tudo foi só alucinação!

(Agatha Christie)